“Isso é uma cena absurdamente britânica”, diz um dos personagens de “The Deadly Affair”. Eu iria além: tudo neste filme é absurdamente britânico. A trama envolve o suposto suicídio de Fennan, um funcionário do governo acusado de ser comunista. Charles Dobbs, do Serviço Secreto, crê em algo a mais e, ao perceber que seus colegas são preguiçosos e acomodados, pede demissão, iniciando uma investigação particular. Charles não vive uma grande fase; Ann, sua esposa, é abertamente infiel e tem mantido um caso com Dieter Frey, amigo do marido dos tempos de Segunda Guerra Mundial. Descobrir o que aconteceu com Fennan não é apenas um trabalho, mas uma distração e a chance de se reconectar com algum tipo de verdade. Lumet destaca a situação atual do protagonista ao posicioná-lo distante de alguns personagens no quadro.
A casa de Elsa, esposa do falecido, está um caos, o que é perdoável, considerando seu estado emocional. E, se a desorganização fosse oriunda de seu envolvimento no assassinato (um sinal de sua ligação com o mal)? Charles percebe sutilezas, como, por exemplo, o cumprimento entre Dieter e Ann – há algo ali que entrega o romance escondido. O trabalho serve de esconderijo; o problema é que, quanto mais imerso a esse esconderijo, mais próximo do perigo o protagonista fica. Por trás de Fennan, há uma teia de espiões comunistas. Quando achamos que o antagonista dirá a que veio, um tal de “Blondie”, descobrimos que ele é só um peão do verdadeiro líder.
Ao lado de Charles, está Mendel, um detetive aposentado que detesta suposições, atentando-se somente aos fatos. Uma das piadas recorrentes é o fato de Mendel dormir sempre que alguém abre um monólogo. Mas, afinal, o que torna este filme tão britânico? O frio londrino, acompanhado por sobretudos e chapéus, é inconfundível. Não existem dias ensolarados, o que conversa com os personagens e com a natureza complexa da trama. Lumet é o mestre da concisão; seus enquadramentos, de uma elegância ímpar, não chamam a atenção para si. Os personagens adotam a mesma elegância na investigação, avançando como sombras em meio à névoa, aproveitando-se de pequenas pistas. Alguns talvez sintam falta de sequências de ação; talvez este seja um filme mais maduro; talvez os ingleses não precisem sujar as mãos, já que seus cérebros são o bastante.
Há, sim, uma cena violenta, na qual Mendel espanca um pinguço que emprestou um carro para o tal “Blondie”. Lumet muda de abordagem, saindo da sobriedade por alguns segundos a fim de emular o estado dos personagens. A direção de arte pinta os cenários mais sombrios possíveis; a trilha sonora, composta por Quincy Jones, com toques jazzísticos e de bossa nova – o tema principal é cantado por Astrud Gilberto -, evoca uma atmosfera soturna e convidativa. A excepcional cena no teatro, precedida por uma perseguição que faz jus às qualidades que pontuei acima, é bastante reveladora. A surpresa, além de crível, é importante para que, no fim, o protagonista vire a chave e siga com a sua vida. O plano-detalhe dos pés aumenta o suspense, até que Lumet finalmente mostra o rosto do verdadeiro antagonista. Eu já ia me esquecendo do elemento “mais britânico” do filme: James Mason, o ator que interpreta qualquer tipo de personagem sem jamais perder a elegância. Aqui, ele combina perfeitamente o cansaço do cotidiano com o ímpeto de desvendar o mistério.
“The Deadly Affair” é um belo exemplar do cinema investigativo da década de 60.