Em uma época na qual os filmes de super-herói seguem fórmulas básicas ou dependem de elementos nostálgicos para obter efeito, é animador ver algo como “The Batman”, uma obra densa, carregada por uma atmosfera fúnebre e personagens que se complementam muito bem naquele espaço.
Talvez seja cedo para afirmar, mas na minha opinião Robert Pattinson é de longe o melhor Batman de todos os tempos. O ator entendeu a essência do herói, entendeu a máscara que ele usa e foi impecável ao dar vida a verdadeira face dele.
O Batman é um dos heróis mais difíceis de se analisar, pois existem duas personas completamente diferentes. Bruce Wayne é um jovem pálido, anti social e recluso, que sabe exatamente como deve honrar a memória dos pais. Os negócios são secundários, a luta está nas ruas. O que mais me impressionou foi o trabalho facial e físico do ator, que denota um cansaço absoluto. Bruce Wayne é um cara rico, um órfão, um jovem quase mitificado por uma tragédia. Sua pele arde, ele odeia ter que manter as aparências, odeia ser essa pessoa. Bruce não sabe como agir em público, não sabe o que é o amor e nem quer saber. Às vezes ele precisa vestir essa máscara e o resultado é sempre o mesmo.
As olheiras e a aparência gótica compõem muito bem esse personagem exausto por ser algo que não quer.
O Batman é o vigilante, a persona que faz a vida de Wayne ter sentido. Seus pais morreram por causa do crime organizado, Gotham precisa de alguém. Ele aparece falando sobre vingança, mas logo descobrirá que é bem maior que isso. O Batman está tão cansado quanto Bruce, sua cidade é enorme, não há como estar em todos os cantos e a criminalidade só aumenta. Suas anotações são narradas com uma voz monotônica, que denota a sua descrença nas instituições, colocando-se como a única opção de justiça. Ambas as personas são respeitadas, Bruce, pelo dinheiro e Batman, pelo medo. A primeira aparição do homem morcego é impactante, pois expõe seu efeito perante os bandidos, que ficam desesperados. Magro, tímido e abatido, Bruce se transforma em um vigilante temido, forte e crível. Diferente da maioria dos super-heróis, esse Batman não é nada lúdico ou fantasioso. É um homem deprimido, que encontra em uma fantasia de morcego a única oportunidade de enfrentar seus demônios internos, fazer justiça e limpar seu único bem restante. Os policiais o veem como uma ameaça, soando, na verdade, como medo e inveja.
Pattinson consegue aliar as duas personas, de forma com que se misturem e conversem entre si. São performances distintas, que exigem qualidades específicas e elas estão lá. Bruce Wayne nunca foi um personagem tão especial, ele sempre foi rico, mas agora entendemos que isso é uma espécie de maldição. Estar naquela pele dói, não é natural. As lembranças eram agonizantes, a visão dos demais não o agradava e ele nunca explorou essa parte mais humana. Por outro lado, o ator imprime toda a vitalidade e força que o vigilante mascarado deve ter, mantendo a expressão e a voz exaustas. Ele não sabe se conseguirá e continuará tentando, pois Gotham precisa dele, e sem o Batman, Wayne não é absolutamente nada.
O outro grande ponto é a ambientação, tudo nos remete a um clima fúnebre. O filme se passa quase todo à noite, a fotografia exalta as cores mortas e ainda dá espaço para tons fortíssimos que variam entre o vermelho e o laranja. A mansão de Bruce não é nada moderna, é antiga e foge das obviedades comuns a esse personagem.
Gotham é uma cidade soturna, movida por bandidos e habitada por pessoas extenuadas. A trilha sonora é magnífica, o tema principal é impactante, mas um em especial que me marcou bastante pela elegância, que costuma passar longe dos filmes baseados em quadrinhos. “Something In The Way”, do Nirvana, conversa perfeitamente com o clima obscuro e a versão gótica do protagonista.
Temos vários coadjuvantes, alguns são excelentes, outros nem tanto.
O Charada é o mais notável, o que tem mais espaço e que de certa forma dita o caminho do vigilante. Paul Dano provou que foi a escolha ideal. Não é uma interpretação muito original, mas funciona do início ao fim. Ele é um vilão inteligente, que desde a primeira cena mostra a que veio e não para em ideias diabólicas e infantis. Sua intenção é clara e seu ódio é palpável. Sentimos medo do Charada não por poderes sobrenaturais, porque seu discurso é genuíno. Gotham é movida por políticos e policiais corruptos, que inundaram a cidade com promessas falsas e projetos mascarados. Os culpados precisam pagar e o Charada vai atrás de cada um deles. Ele é o tipo do personagem que sabe exatamente o que fazer, só esperamos a próxima vítima. Além da corporalidade, eu adorei as variações vocais que Dano dá ao vilão, indo do grave opressivo ao fino que remete à insanidade. O Charada é assustador, sua retórica chama atenção e isso se deve ao belo trabalho de Paul Dano, um dos melhores atores da atualidade.
O comissário Gordon é um resistente dentro de um departamento policial movido por esquemas. Ele também está exausto e sua parceria com o Batman é excelente exatamente por isso. Dois seres que desejam ver Gotham limpa, mas sabem que há um vasto caminho até lá. O personagem compõe muito bem o ambiente soturno e obscuro proposto pelo diretor, ele não existiria em outro lugar. Jeffrey Wright está ótimo, não há nada muito elaborado aqui, nem defeitos, seu Gordon é operante e tem uma boa química com o protagonista.
Falando em química, quem também atua impecavelmente ao lado do Batman é a Mulher Gato, que acabou superando as minhas expectativas. Achei que ela seria uma espécie de vilã, com aquela relação ambígua com o protagonista, mas não, seu arco é significativo, seu passado é repleto de segredos e há algo dentro dela que clama por um abraço. É aí que surge o Batman, que claramente não a trata como uma prioridade. Ele tem carinho e atração pela personagem, se identifica com o seu sofrimento, mas entende que existe um bem maior e que se ela por acaso tomasse a frente, se tornando prioridade, ele teria que dar mais espaço para Bruce Wayne e isso estava fora de cogitação.
Zoe Kravitz traz sensualidade e carisma à personagem, talvez tenha faltado aquela dubiedade, mas isso não é culpa da atriz, que cumpre seu papel perfeitamente.
Carmine Falcone é um personagem interessante, pois traz uma visão diferente dos demais. Ele é um mafioso super respeitado, que aos poucos demonstra um poder maior do que o imaginado. John Turturro o interpreta com muita facilidade, o caminhar e a fala denotam tranquilidade, todos ali o respeitam e devem algo a ele. Carmine é um desses personagens que surge grande e se torna gigantesco com o tempo. A corrupção e o crime, que eram tão vastos, na verdade estavam nas mãos de um único homem e Turturro transmite essa importância com muita naturalidade.
O mesmo não pode ser dito do Pinguim, interpretado por Colin Farrell, que até surge como uma figura interessante, mas acaba se transformando em uma caricatura ambulante, que diz coisas com um sotaque extremamente forçado e tenta fazer piadas em momentos desnecessários. Não tem como levar o Colin Farrell a sério com aquela quantidade de prótese e maquiagem.
Já Andy Serkis está apenas ok como o Alfred. Não há nada de muito especial em sua interpretação e o roteiro ainda o expõe a uma série de diálogos expositivos que não deveriam estar no filme. Ele tem um carinho forte por Bruce Wayne, tenta ser a figura paterna e sabe que nem sempre consegue. Há um momento em especial que de fato expõem o laço entre os dois, e é tocante.
O roteiro é impecável ao estabelecer a dinâmica entre Bruce e Batman, o desenvolvimento do protagonista é corajoso e refrescante. Ele acaba entendendo que acima de um justiceiro vingativo, é uma esperança para a cidade e para as pessoas, um herói que nunca tiveram e em quem podem se espelhar. Não é uma transição moralista, nada disso, o arco é super bem trabalhado e esse final é justíssimo. Gostei muito também como o roteiro deixa a pergunta: “o que aconteceria se a população de Gotham descobrisse que Wayne é o vigilante?” no ar.
Toda a trama envolvendo o Gordon e o Batman indo atrás do charada é instigante, graças a química entre os dois, o método torturante do vilão e as pistas que às vezes parecem simples, mas não são. Há um clima meio “Seven” aqui. As investigações se assemelham e na minha opinião são ainda mais interessantes.
A parte que trata dos esquemas e do domínio da máfia chama bastante atenção, apesar de nem sempre ser muito clara. Esse jogo de poder, que muda de mãos a todo instante e sempre fica mais sujo, é bem trabalhado. A ligação de Bruce com Carmine é importante, pois retira o olhar puro que o protagonista tinha do próprio pai e acrescenta um elemento “familiar” que deve ser digerido pelas duas personas.
O filme poderia ser menor, alguns segmentos são desnecessários, o tempo pesa um pouco e há uma cena específica que deveria ser a última, mas não é.
Eu também atribuo esse problema a direção de Matt Reeves, que às vezes perde um pouco a mão e dá ênfase a momentos que não deveriam existir. Mesmo assim, sua condução é marcante. Sua Gotham é de longe a mais especial entre todos os filmes do vigilante. Há muita personalidade e originalidade aqui. “The Batman” é uma obra de arte, que se leva a sério e logicamente não irá agradar aos mais ingênuos. Eu adorei os planos em que ele eleva a figura do herói, principalmente aqueles, em que o pinguim o observa de cabeça para baixo e o que deveria encerrar o filme, onde o Batman finalmente se vê como uma figura maior dentro daquela selva.
As cenas de ação são marcantes e empolgantes. A coreografia é excelente e Reeves permite que entendamos a geografia e a lógica das cenas.
“The Batman” é um épico, um filme importante, que respeita e entende a essência do personagem mais interessante dos quadrinhos. Além de criar um universo muito particular e ser artisticamente relevante, também prova que dá sim para fazer algo inovador envolvendo super-heróis.
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