Os moradores de uma cidade fictícia situada no Rio Grande do Sul se reúnem para debater sobre o tratamento do esgoto local, relegado pela prefeitura, que não disponibiliza verba para o saneamento básico. Sem esperança, Marina descobre que o Governo Federal disponibilizou 10 mil reais para um projeto audiovisual e decide embarcar numa aventura. Em “Saneamento Básico, o Filme”, Jorge Furtado realiza um delicioso jogo metalinguístico, fornecendo ao espectador uma “aula” daquilo que não deve ser feito numa produção cinematográfica. O “curta” precisa ter dez minutos, mas a equipe envolvida não faz a menor ideia por onde começar.
Quando Fabrício pergunta quem vai operar a câmera, a reação de Silene é a mais genuína possível: “Operar?”, com um olhar confuso e perturbado. O filme deve ser uma ficção, o que leva a trupe a convicção de que monstros são necessários. Marina faz questão de procurar o significado da palavra em questão no dicionário e se assusta com algumas definições.
-Farsa, fraude.
-É um crime?
Eis que Joaquim, marido da protagonista, surge com a grande ideia: “O Monstro da Fossa”. O roteiro, escrito por Marina, adere a diálogos expositivos, tem dificuldade em introduzir personagens e desacredita da capacidade dos intérpretes demonstrarem emoções naturalmente, abusando de descrições. Os atores, melhor dizendo, os moradores da cidade, gostam de encarar a câmera e agem como alienígenas que desconhecem o comportamento natural humano. Por outro lado, não deixa de ser bonito o ânimo de Marina ao perceber que não precisa apresentar o monstro logo de cara, “sendo ele a câmera” (plano subjetivo). A fim de destacar a loja que emprestou alguns vestidos para a produção, Fabrício corre atrás da etiqueta e filma um plano-detalhe – sutileza digna de um veterano. Alguns tapas saem fortes demais – ficção e realidade se confundem – e a fumaça introduz o horripilante monstro, cujo figurino deixaria Ed Wood orgulhoso. Ah, e, claro, o nome da protagonista é Silene Seagal.
Otaviano, pai de Marina, é obrigado a deixar sua loja de beliches para dar vida a um cientista, afinal, o roteiro original rendeu apenas quatro minutos de espetáculo. Antônio, que passa o tempo todo discutindo com Otaviano, também faz uma ponta engraçadíssima. O “Monstro da Fossa” está pronto e não é exatamente a maravilha que os envolvidos imaginavam que seria. A montagem, algo que eles nunca tinham escutado antes, entra em ação. Zico, especialista na área, é o responsável por dar algum tipo de graça/charme ao filme. Ele fica tão empolgado com o projeto, que assume o posto de diretor, numa tentativa de pôr em prática a sua sensibilidade artística. Ao inseri-lo, Furtado enfatiza a função primordial do montador e do cineasta, ao mesmo tempo em que aponta para o entusiasmo juvenil do iniciante, que acredita estar estabelecendo um novo paradigma para a linguagem cinematográfica. Zico fala em metáforas e sequências poéticas, provando que não tem domínio algum sobre o tom do filme.
Furtado poderia focar exclusivamente no jogo metalinguístico, mas também explora seus personagens. Marina é insegura e não recebe bem críticas, no entanto, é quem carrega o piano e mantém a esperança da obra no esgoto acesa. Ela idealiza uma certa vida e se machuca ao perceber que nem tudo está sob controle. Suas interações com Otaviano são tumultuadas e nervosas, porém, no fundo, revelam o enorme carinho que nutrem um pelo outro. Joaquim se sente inferior aos demais por não ter um curso superior. Ele talvez seja o mais ignorante/ingênuo da trupe e é quem realiza os gestos mais puros e honestos de empatia, como, por exemplo, vender a querida moto para ajudar no financiamento do filme. Ainda que, às vezes, irrite Marina, todas as suas ações visam ao bem-estar e a felicidade da esposa. Silene sonha em ser uma estrela e acredita que está no caminho certo. Eles podem até ser de uma cidade pequena, mas são grandes pessoas e esse é um dos principais trunfos de Furtado. É fácil criar simpatia por seres tão generosos e humildes.
Fernanda Torres esbanja talento, flutuando perfeitamente entre a vulnerabilidade da personagem e o humor. Wagner Moura oferece uma performance encantadora, provando a sua versatilidade, já que, no mesmo ano, encarnou o famoso Capitão Nascimento.
“Saneamento Básico, o Filme” é engraçado, ácido e dotado de um coração enorme.