Em 1971, Arthur e Annie Pope, num ato contra a Guerra do Vietnam, explodiram um laboratório de napalm. Desde então, o casal e seus dois filhos são perseguidos pelo FBI, obrigando-os a viver uma vida errante. Eles estão em constante movimento; mudanças de nome, residência, cor de cabelo, emprego, escola e carro fazem parte do ritual ao qual os Pope já se acostumaram. Por um lado, há de se admirar a força de vontade de uma família que se mantém unida mesmo tendo desistido da normalidade por lutar por aquilo que acredita. O carinho que Arthur e Annie sentem por seus garotos é palpável, todavia, imersos a uma ideologia rígida, eles, às vezes, se esquecem que estão lidando com indivíduos, seres com desejos e sonhos próprios. “Somos uma unidade!”, afirma Arthur, que não percebe a contradição de seu discurso. Casas pequenas e vazias ressaltam a condição claustrofóbica e clandestina de suas existências, ao mesmo tempo em que ratificam o amor visto em tela. Sempre que chegam numa nova cidade, a família realiza uma espécie de ensaio geral, repassando frases genéricas.
Danny, o filho mais velho, exercita sua paixão por instrumentos num teclado que nunca está ligado na tomada. Nas escolas que frequenta, ele costuma escolher música como matéria opcional. Danny gostaria de compartilhar uma ideia interessante na aula ou de conversar com seus colegas, mas deve manter uma discrição absoluta. É como se andasse com uma enorme corrente em seu pé, impedindo-o de ser sua versão mais genuína. Mr. Phillips, o professor de música, fica emocionado ao vê-lo tocando piano e, bem intencionado, fica na sua cola para que se apresente em outras ocasiões. Paixões marcam o indivíduo. O indivíduo deve pagar por algo que seus pais cometeram anos atrás? Se o indivíduo forma uma unidade, suas paixões precisam ser esquecidas. Que tipo de vida é essa? Cedo ou tarde, os filhos precisam abandonar o berço – tamanha proteção não faz jus a um casal tão revolucionário.
Aos 17 anos, o jovem começa a estabelecer prioridades e a entender qual caminho trilhará. O instinto de proteção, dependendo da situação, pode equivaler à castração e Danny precisa tomar uma decisão. Lorna, filha de Mr. Phillips, surge e confunde a cabeça do protagonista, que, pela primeira vez, pensa em si e naquilo que o interessa. Ser agradável é um mecanismo de defesa e, ao lado dela, Danny tem espasmos de autenticidade. River Phoenix faz com que o espectador sinta seu impotente desejo de se abrir através da calculada distância que tenta preservar. A garota pela qual está apaixonado está ali, mas ele não sabe exatamente o que pode dizer ou se deve dizer algo. Phoenix transmite essa complexa sensação com uma naturalidade que conversa com o cinema de Sidney Lumet. Danny caminha com Lorna pela natureza, ambiente que representa pureza e sigilo. Sua imprevisibilidade advém das incertezas que o rondam e do contato com um novo sentimento. Na sequência mais linda do filme, os Pope e Lorna, no aniversário de Annie, dançam ao som de “Fire and Rain”, de James Taylor. A leveza dos passos e a harmonia do contato físico reforçam o afeto que rege a existência daquela família – não tenham dúvidas de que eles gostariam que todos os dias fossem assim.
Mr. Phillips encoraja o protagonista a buscar uma admissão em Julliard, célebre universidade de artes, conferindo um peso ainda maior ao seu futuro. E, seus pais, o que acharão disso tudo? Arthur tem seu plano de jogo definido, mas seu suspiro após um gesto carinhoso do filho salienta o seu caráter passional. Annie negou o talento musical em prol do ativismo político e se enxerga em Danny. “Olha o que estamos fazendo com esses garotos. Têm fugido a vida toda, como criminosos”. O roteiro, escrito por Naomi Foner, é um dos melhores com o qual Lumet já trabalhou. A família é uma casa e a garantia de empatia, não um fardo eterno. Abandonar Lorna e a música, significaria abdicar de si mesmo. Poucos filmes captam interações familiares com tamanha destreza; poucos filmes apresentam cenários complexos sem julgar seus personagens; poucos filmes registram o primeiro amor com tanta fidedignidade. Afinal, sem o direito de escolha, o que somos?
Além de Phoenix, o elenco conta com o excelente Judd Hirsch, Christine Lahti, que forma o contraponto perfeito ao pragmatismo do marido, e Martha Plimpton. A trilha sonora, à base de piano, é precisamente delicada e melancólica.
Lumet é um desses cineastas que faz tudo parecer simples e trivial. Ele apresenta situações e extrai delas o que há de mais humano e importante. Seus movimentos de câmera são suaves e ele sabe quando deve ir de um plano médio para um plano fechado, destacando o poder de certas emoções, como, por exemplo, no comovente reencontro entre Annie e seu pai. Ao receber a notícia da morte de sua mãe, Arthur processa a informação. Ele caminha até o carro e Lumet não o persegue, respeitando-o ao abrir quadro, observando-o à distância. Os filmes de Sidney Lumet são aulas de uma direção concisa e atenta a detalhes, e “Running on Empty” é mais uma prova de sua genialidade.