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“A palavra paixão quer dizer sofrimento”. Na maioria das vezes, sim, ainda mais se levarmos em conta os romances escritos antes do século dezessete. Os personagens dessas histórias – e desse filme – ficam embriagados pela ideia do amor, de estar apaixonado por alguém. É trágico, porque eles se matam. E eles se matam, porque a vida deles se limita ao amor.

Se Pedro tem tanta certeza que o amor é melancólico, por que cai na armadilha?

Ele está trabalhando numa adaptação do clássico “Tristão e Isolda” para o teatro e se apaixona por Ana, a atriz. Pedro fala sobre o vinho do amor, a duração máxima de uma paixão e o conceito de reciprocidade infeliz. As palavras que saem da boca dos personagens e dos atores se misturam. Eles conversam e caminham como jovens saltando sobre as nuvens. A teatralidade se mantém nas expressões que utilizam, nos trejeitos e na intensidade dos sentimentos. O teatro é a arte da integridade, dos finais que desafiam necessidades orçamentárias… é a arte do amor.

Na noite de estreia, Danilo, um produtor televisivo, se encanta com a performance de Ana e propõe um negócio à atriz. Na mesa, ele e Pedro se sentam às cabeceiras, distantes um do outro. A protagonista decide que pode fazer as duas coisas, que pode morrer nos finais de semana e rir nos outros dias.

A fotografia em tons frios remete ao romance teatral e os únicos momentos em que essa proposta muda radicalmente são, justamente, quando Ana está na televisão, tomada por cenários coloridos e uma agenda enjoativa. Quem vai ao teatro, quer ser afetado, está ali por preferência; em contrapartida, qualquer um pode ligar um aparelho televisivo, sendo aqueles que só querem esquecer de um dia cansativo, o verdadeiro público cativo.

As pessoas continuam a assistir “Tristão e Isolda”, agora não pela clássica tragédia em si, mas por Ana. Pedro nunca gostou desse “rodízio” e se vê encurralado por ciúmes. Ele deveria saber que conversas escutadas atrás de paredes não costumam ser verídicas e é dessa forma, a mais teatral possível, que Pedro rompe com Ana.

Fernanda é a ponte que desmantela e une o casal. Ela é também uma espécie de “alívio cômico”, quebrando o romantismo, sempre enérgica e sarcástica. Três anos se passam e Ana, já consolidada nas novelas, convence Danilo a chamar Pedro para dirigir um especial de fim de ano. “O Pedro é complicado, é um artista”.

Aquele amor não acabou, foi apenas interrompido por um mal-entendido. Pedro amadureceu, aprendeu a admirar o cotidiano e deixou de dizer coisas antiquadas como: “o casamento é o túmulo do amor”. Não digo que ele esteja mentindo, mas que pessoa sobreviverá seguindo esse tipo de ideologia?

“Eu tive medo”, relata Pedro, logo ele, um professor na matéria da paixão. Tudo bem, vamos supor que as pessoas estejam fadadas a relacionamentos curtos ou a uma longevidade exaustiva. Por que as histórias também têm que ser assim? Não a de “Tristão e Isolda”, essa é uma tragédia consagrada que não deve ser modificada, mas, por que não “modificar” a de Pedro e Ana?

A metalinguagem permeia a trama inteira, desde a exposição de produções televisivas e de peças baratas, até na maneira que a arte conversa com a realidade dos personagens. Pedro, então, decide levar o mito irlandês para o sertão nordestino. A fim de conferir uma autenticidade maior ao espetáculo, o papel de Tristão é disputado por moradores locais. Fernanda está namorando Orlando, um canastrão de marca maior, e tem uma ideia: colocá-lo nas audições, fingindo que é José, um sertanejo qualquer. Ele ganha o papel com certa facilidade e encarna Tristão com a comoção requerida – a arte de interpretar elevada ao seu potencial máximo.

Ana, que havia se apaixonado por Pedro enquanto encenavam a mesma peça, se afeiçoa por José. Na verdade, não por José, muito menos por Orlando, mas pelo personagem que fala sobre o amor com nobreza e sensibilidade. Ana precisa se decidir, não pode ser prisioneira de uma idealização, de uma lenda criada no século nove. O triângulo amoroso ganha contornos interessantes quando a protagonista e Pedro, agora um apreciador da rotina, se esclarecem e retomam o antigo romance.

Ana quer Tristão ou Pedro? Ana quer a televisão ou o teatro? Ana quer um ator interesseiro que deseja usá-la para catapultar a própria fama ou um homem que está disposto a tomar o vinho do amor todos os dias de sua vida?

“Eu coloquei na boca dele as palavras que queria lhe dizer”, diz Pedro, em conflito com sua criação. Danilo quer um final diferente e o diretor, sem opção, obedece o patrão e os patrocinadores. Todavia, à sua maneira irônica e perspicaz, Pedro faz o melhor que pode, mantendo a fidelidade ao material-base.

Somos todos representações da melhor versão que podemos ser naquele exato instante. A verdade é uma mentira, algo que se adapta com o tempo, com as experiências e com o amadurecimento. Isolda deve se matar, tem que seguir seu amado. Ana não precisa se martirizar, Pedro está ali, com uma nova peça à sua disposição. A história deles pode terminar com um beijo, pode nos encher de esperança, nos fazer rir, o cinema tem esse direito.

A arte imita a vida – e vice-versa -, o que não quer dizer que não podemos andar por conta própria. Os três anos podem durar dois meses ou uma existência inteira.

A arte molda expectativas e os pensamentos das pessoas e “Romance” trabalha essa desconstrução brilhantemente. Através da felicidade e das realizações pessoais, a arte de Pedro melhora, fica mais autoral. Ele não precisa mais adaptar peças clássicas.

A direção e a montagem dão dinamismo e agilidade ao filme, que, mesmo nos momentos mais “parados”, segue intenso. Guel Arraes movimenta sua câmera elegantemente e respeita o próprio conceito, dando espaço para os intérpretes. Quando a relação entre Pedro e Ana fica estremecida, o vinho acaba mais rápido. Esse tipo de sutileza engrandece a obra e confere uma importância maior a símbolos que, a princípio, poderiam soar bobos ou comuns.

José Wilker, Marco Nanini, Vladimir Brichta e Andréa Beltrão formam um elenco de apoio formidável, inserindo uma comicidade necessária.

Dito isso, o show é inegavelmente de Letícia Sabatella e Wagner Moura, que, além de apresentarem uma química incrível, escapam de armadilhas. Em vez de ridículos, os dois surgem charmosos e encantadores desde a primeira cena, entoando versos anacrônicos com honestidade. A expressividade de seus rostos já é o bastante e eles funcionam perfeitamente dentro da proposta teatral de Arraes.

“Romance” é uma maravilha que merece ser vista.

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