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Baseado no livro de Robert Daley, “Prince of the City” narra a trajetória de Danny Ciello, um policial da divisão de narcóticos que, tomado por culpa e uma vontade de se regenerar, decide cooperar com a Comissão Chase, que investigava a corrupção no departamento policial. A divisão de narcóticos é a mais suspeita, por ter jurisdição na cidade inteira e um controle absoluto sobre suas ações. Danny é enfático: aceita expor a sujeira, contanto que não resvale em seus colegas de unidade. Os grandes cineastas transformam o cinema policial num meio de reavaliação de todos os códigos morais impostos pela sociedade, obrigando o espectador a evitar afirmações categóricas sobre o certo e o errado. Lumet compara os policiais com a máfia; não apenas pelos crimes sigilosos, mas, principalmente pela camaradagem e pelo caráter familiar da relação entre os colegas. Em determinado momento, Danny, angustiado e nervoso, admite aos amigos que é um agente duplo e que nunca chegou perto de prejudicá-los. O esperado seria algum questionamento ou a ira generalizada; mas não, o que vemos é um grupo preocupado com um amigo que está à beira do colapso. A sala escura e a posição central de Danny ressaltam a tranquilidade que a unidade quer transmitir a ele.

No início, quando o protagonista, cabisbaixo, aceita a nova função, uma fusão o coloca basicamente entre as grades. Sabemos que, a partir dali, Danny viverá numa eterna encruzilhada: se os policiais suspeitarem de algo, ele será morto, e, caso minta para os promotores, será preso por perjúrio. Uma das perguntas que eu me fiz enquanto assistia ao filme foi: vale a pena correr tanto risco? Danny passa por um conflito existencial; seus irmãos estão na unidade de narcóticos, no entanto, as aspirações que o levaram ao departamento se esvaíram como a poeira nova-iorquina. O idealismo da profissão dos “bons moços” não existe e, num piscar de olhos, o protagonista se vê do lado contrário da lei. Danny olha para a família que construiu e tem vergonha de suas atitudes. Sua consciência pesa. Ser um “rato” diminuirá o peso ou potencializará seu medo e angústia? É uma posição que, de alguma forma, acarretará sequelas psicológicas irreversíveis, o que, a meu ver, dignifica ainda mais o protagonista.

Parece simples; os policiais corruptos devem ser presos e os promotores são os heróis que aplicam a lei em seu rigor máximo. O grande mérito do roteiro de Lumet é embaralhar a mente do espectador. Há uma diferença entre o meio e o indivíduo. Gus, Joe, Bill e Gino, amigos de Danny, podem até ter cometido alguns delitos; todavia, isso não diz nada sobre o caráter deles. Estamos falando de homens imersos a um meio naturalmente corrupto, não de párias que romperam o sistema para se “dar bem”. As ruas têm leis particulares e, fora delas, esses personagens mostram suas reais faces: pais de família, amigos leais e pessoas extraordinariamente sensíveis. Por outro lado, os promotores, paladinos da moral e dos bons costumes, são completamente indiferentes quanto aos possíveis destinos de Danny. Estão presos a literalidade de um código com centenas de artigos e só fazem questão de demonstrar empatia quando lhes convém. Seria fácil dizer que o lado da lei é o correto e que me identifico mais com os promotores. Esqueçam a ótica objetiva; julgar alguém é uma desculpa para não conhecê-lo. Em “Prince of the City”, Lumet se aprofunda em cada aresta dessa interminável teia, provando que, por trás de cada posto, emprego ou função, existe um ser humano. Danny sabe disso; por isso seu arco é tão doído e complexo.

Os churrascos e encontros em espaços abertos são substituídos por uma sala pomposa, dominada por quadros grandiosos e detalhes em dourado. Danny não cabe naquela realidade e sabe que não pode confiar nos novos “colegas”. Aos poucos, ele perde seu senso de humor, dando indícios de exaustão – Lumet, com sua câmera, acompanha seus passos atordoados pelas salas. Claro, existem exceções entre os promotores. Rick, Brooks e Mario criam um vínculo com Danny, que, ao saber da promoção dos dois primeiros, fica genuinamente feliz. “Isto é apenas o início” deveria ser uma frase celebratória. A teia não tem fim e Danny, a fim de expurgar seus demônios, assinou um contrato com o diabo. Anos se passam e, inevitavelmente, a linha chegará em seus amigos. Entre momentos de maior e menor exposição, vemos o protagonista definhando, tomado por sentimentos que ultrapassam o remorso e a culpa. Quando Gino, a figura mais adorável do filme, é capturada e posto contra a parede, Lumet fecha o quadro em seu rosto, enfatizando a decisão tomada por ele. A trilha sonora melancólica é perfeita para um filme absolutamente devastador. No fim, tudo se resume a pessoas tentando ganhar a vida. Na reunião definitiva, Lumet usa as sombras para cobrir o rosto dos promotores – seu talento está ali; aquele é o seu único julgamento moral.

Nova Iorque é um personagem à parte. Poucas cidades dizem tanto com sua geografia, escuridão, sujeira peculiar e senso de desesperança. O ambiente engole tanto Danny, que, quando ele passa um tempo nas montanhas e no litoral, sentimos uma espécie de respiro. O último plano sintetiza a potência de uma obra que nega simplificações. O subestimado Treat Williams oferece uma performance repleta de camadas, combinando seu carisma habitual com as mais diversas emoções.

“Prince of the City” é um dos melhores filmes realizados na década de 80.

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