Algumas pessoas têm dificuldade de diferenciar o conteúdo de um filme das reais pretensões do cineasta. Louis Malle não é um pedófilo. Uma de suas principais qualidades era a capacidade de dirigir crianças. Os bastidores de “Pretty Baby” são cercados de controvérsias que, sinceramente, neste momento, pouco importam. Filha de Hattie, uma prostituta, Violet vive no bordel, acompanhando o cotidiano movimentado. O ambiente, elegante em sua arquitetura e cercado por pessoas bem vestidas, além de nos situar historicamente (o filme se passa em 1912, em Nova Orleans), é surpreendentemente convidativo. Parte deste deslumbre, vai ao encontro da inocência de Violet, que, por ter nascido e crescido ali, enxerga tudo com naturalidade. Há, também, o desejo das moças de impressionar seus clientes. As coisas não mudaram; como nos dias atuais, todos estão sedentos por algo: as prostitutas, por dinheiro, e os homens, por sexo – não à toa, a direção de arte dá uma atenção especial ao dourado e ao vermelho.
Violet se sente tão à vontade no prostíbulo, que, quando sua mãe a avisa que está indo embora, ela se recusa a acompanhá-la. Objetificadas ao extremo, essas mulheres sonham com a dignidade do casamento e o conforto que somente um marido rico poderia lhes proporcionar. Hattie, imersa naquele ambiente, permite que sua filha seja treinada para trilhar o mesmo caminho. É aí que Malle, com a intenção de apresentar o contexto absurdo de tempos passados, elabora a sequência em que Violet, “a virgem”, numa espécie de bandeja, é oferecida aos cavalheiros. Meiga e ingênua, a protagonista seduz seu cliente; todavia, quanto mais ele se aproxima, mais se assemelha a um monstro da escuridão. Malle tinha um raro talento para transformar o inaceitável em aceitável, obrigando o espectador a reavaliar certas convicções e a analisar o cenário por inteiro. Por mais chocante que seja, “Pretty Baby” não é sobre a prostituição infantil, mas sobre uma infância dilacerada e a condição de mulheres que, diante do vazio, encontram harmonia e afeto. A cena do “pique esconde” expõe a leveza que cerca o prostíbulo – os seres humanos se adaptam às suas realidades.
Hattie encontra um bom partido, deixando a filha, pelo menos por agora, sozinha. Cansada das exigências de sua patroa, Violet foge para a casa de Bellocq, o fotógrafo do bordel, um homem tímido e educado. Chegando lá, a protagonista, à distância, o observa. Diferentemente do “monstro da escuridão”, Bellocq está iluminado, o que ressalta a confiança que a garota tem nele. Brooke Shields atinge uma dualidade complicadíssima, não conseguindo fugir dos trejeitos e do linguajar “prostibular”, ao mesmo tempo em que mantém uma pureza intocável, inerente à sua idade – os figurinos “inapropriados” são fundamentais para tal percepção. A tragédia está na impossibilidade de, aos 12 anos, enxergar outro tipo de vida ou de comportamento. Ao ser presenteada com uma boneca, Violet, a princípio, reage feliz, porém, depois, questiona se ainda tem idade para aquilo. Bellocq é um homem carente, cujo caráter pode ser considerado bom apenas para os padrões daquela época. Sua solidão é um perigo para Violet, que aceita ser sua namorada e, posteriormente, esposa. A sequência de nudez fala por si; no entanto, vê-la andando sozinha, com uma mala e roupas adultas é igualmente deprimente. Como mencionei acima, o tom descontraído, por vezes, cômico, pode nos distrair, mas não se enganem: aquela é a percepção de mulheres que aprenderam a se desvalorizar.
Malle não faz alarde para dizer que Bellocq sairá da vida de Violet. Hattie, casada e feliz, conversa com a filha; o fotógrafo fica ao fundo, numa baixa profundidade de campo. Com um simples puxão de Hattie, Malle tira Bellocq do enquadramento, confirmando o que prevíamos. Será que Violet conseguirá se livrar dos “vícios” e viver uma vida normal?
Brooke Shields oferece uma performance grandiosa, assumindo, ingenuamente, a mulher no corpo da criança. Keith Carradine, que estava em plena ascensão, compõe um personagem intrigante; inicialmente, generoso, mas, no fundo, podre.
“Pretty Baby” será eternamente lembrado por suas polêmicas, não por suas inquestionáveis qualidades.