Em seu primeiro trabalho de sucesso, John Boorman deu uma nova face ao gênero Noir. “Point Blank” é a prova de que o cineasta inglês tinha um domínio absoluto da linguagem cinematográfica. Walker é traído por Reese, seu melhor amigo, e Lynne, sua esposa. Juntos, os três participam de um assalto realizado na famosa ilha de Alcatraz. Em dívida com a “Organização”, uma companhia criminosa, Reese, a fim de garantir uma quantia ainda maior, atira em Walker, deixando-o para trás.
Boorman poderia apresentar esses eventos linearmente; mas não, seu intuito é dizer ao espectador que, apesar da trama “manjada”, ele está diante de algo esteticamente inovador. As alternâncias temporais, o uso peculiar de voiceover, as imagens poderosas e a trilha sonora desconcertante fomentam uma atmosfera onírica.
No presente, Walker se uniu a um homem misterioso que deseja derrubar a “Organização”. Os passos do protagonista, estendidos e potencializados pelo design de som, ressaltam a intensidade de sua busca por vingança. A montagem nos leva ao alvo: Lynne, que, segundo informações, está com Reese. A carpintaria narrativa de Boorman fala por Walker, um homem sisudo e que vai sempre direto ao ponto. Ele diz só querer o dinheiro, mas sabemos que sua missão é carregada de ódio e ressentimento, o que é pontuado pelos rápidos flashbacks, inseridos como agulhas que atormentam Walker. A potência dos disparos são autoexplicativos; Reese, se estivesse lá, morreria agonizando. Em seu rosto, Lynne expõe culpa e depressão, não demorando muito para se suicidar. Encontrar Walker é como encontrar um fantasma; um homem que enganou a morte e fugiu do inferno.
A partir daí, o protagonista, em busca do dinheiro que lhe foi roubado, adentra uma trilha de matança e corrupção. Ele tem princípios; é um herói Noir clássico. Algumas sequências, como a do teste drive, na qual ação e humor conversam deliciosamente entre si, e a do atirador, que salienta sua astúcia perante adversários supostamente “intocáveis”, marcam a trajetória de Walker e a experiência do espectador. Boorman, auxiliado por sua equipe, adere a um psicodelismo que vai ao encontro da atmosfera concebida e do período em que o filme foi produzido (final da década de 60). De um ponto de vista estético, “Point Blank” remete a “Petulia”, de Richard Lester, lançado um ano depois.
O clube de jazz, tomado por cores alucinógenas, é um convite ao passado. A comunhão entre o grito do cantor e o grito de espanto de alguém que testemunha a brutalidade é um toque genial. Os já citados flashbacks indicam o quão viva a traição está na mente do protagonista, que luta para manter o profissionalismo. Talvez a humilhação sofrida por Reese seja mais um desejo do que um fato; talvez Walker ainda esteja em Alcatraz, prestes a morrer. Não é fácil suscitar esse tipo de ambiguidade, mas a labiríntica construção narrativa de Boorman é tão elaborada, que podemos crer em realidades diferentes e igualmente válidas. A abertura, em que vemos o rosto de Walker mergulhado na cor vermelha, pode ser um sinal. E o espelho estilhaçado? As sombras, suas fiéis companheiras, podem ser a assinatura do fantasma; por outro lado, podem servir à sua caracterização de sujeito solitário e misterioso. Se ele realmente voltou, sua alma foi devorada – o enigmático final não deixa dúvidas. Boorman é assertivo em seus enquadramentos, destacando a imponência do protagonista a partir de contra-plongées e impressionando a todos com sua mise en scène meticulosamente orquestrada.
Em um mundo dominado pela ganância, Walker clama pela justiça. O terno e os gestos contidos fazem do protagonista uma figura cool, digna do selo “Humphrey Bogart” de aprovação. Lee Marvin demonstra ser o ator perfeito para dar vida a um herói durão e silencioso. Angie Dickinson encarna a “dama Noir” com a sensualidade e a inteligência necessárias.
“Point Blank” é uma obra prima autoral.