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“Como posso ter um caso com um homem que não é casado? Tem que haver igualdade de culpa”.

-Encantador

-Não, não. Você não entende. Não devia ser encantador. Está tudo errado. Devia ser arriscado, sem graça e perturbador.

“Petulia” é um dos filmes mais originais e peculiares que já assisti. Evita rótulos e frustra o espectador que busca respostas ou “pontas amarradas”. Os personagens centrais são seres abandonados, imprevisíveis e desprovidos de cuidado. Archie se separou recentemente de Polo, com quem teve dois filhos e parecia viver numa harmonia constante. Quando ela o visita, o desconforto é imenso, destacado pela disposição de ambos no cenário e pelos enquadramentos optados por Richard Lester. Maturidade, despejo de mágoas, agressividade, um rápido beijo e a vontade que Polo tem de fazê-lo sentir ciúmes se misturam. Warren, seu novo par, é citado algumas vezes ao longo da trama e assume o papel de rival, de alguém que quer roubar o seu papel paternal. Essa intensa interação é digna de casais que já se amaram profundamente – as palavras que saem de suas bocas e suas expressões faciais são gestos adquiridos com o tempo, com o convívio diário.

Petulia é uma moça atormentada pela impossibilidade de ser tratada com carinho. Não sabemos se ela ama David, seu marido, que a maltrata física e psicologicamente. Os fragmentos colocados no início do texto são falas de uma mulher cuja racionalidade extrema é um sintoma de sua insegurança. A protagonista encontra Archie num leilão e, daquela forma, direto ao ponto, propõe uma noite de prazer. Nada acontece, todavia, os dois iniciam uma relação de respeito e empatia, quase telepática, que dita o ritmo da obra. A narrativa de “Petulia” impressiona pela inventividade, sendo um dos pontos chave a abrupta inserção de flashbacks esclarecedores e silenciosos. A protagonista já havia visto Archie, enquanto ele exercia seu ofício de médico, operando um garoto mexicano, gravemente ferido por causa dela. A criança é a peça que leva Petulia a Archie, visto, então, como o homem que reparou seu erro e que é capaz de cuidar de seres humanos.

O universo idealizado por Lester é frio e cruel, não exatamente pela linguagem aderida, mas pela percepção de que os seres humanos não são confiáveis, nem gentis. O doutor cansou da suposta perfeição matrimonial, quer sentir algo novo, porém, se depara com pessoas que, com ou sem intenção, o lembram de que o que foi jogado fora talvez tenha sido a sua melhor chance de ser feliz. Petulia está sempre por perto, não sabemos se ela o persegue ou se é uma ligação que transcende a razão, mas temos certeza de que Archie sente esse “algo novo” ao seu lado – que também desafia qualquer explicação. Petulia fala em salvá-lo, quando, na verdade, quer transferir sua fragilidade para que o tenha por completo, o que nunca acontece, afinal, após a única noite em que passam juntos, Archie, ao chegar em casa, a encontra ensanguentada e inconsciente.

É um aviso: Petulia não está livre para sentir nada além de dor e desconfiança. Temos ideia de quem cometeu tal brutalidade, no entanto, é através de um lindo raccord gráfico, no qual o farol do carro de David é associado à lâmpada da sala de operação que as coisas, de fato, ficam nítidas. Em outro momento, a fim de indicar a presença de um personagem, a inspirada e ativa montagem vai do plano de um placar eletrônico escrito “visitante” para o pai de David, que visita sua nora.

Interpretado por Joseph Cotten, ele é uma figura asquerosa, que entende a situação e justifica a atitude do filho: “leis não escritas”. A cor de sua camisa é idêntica a das paredes do hospital e do cobertor usado por Petulia – a lógica é mantida pela direção de arte no apartamento do casal. Ele e David dominam a pobre coitada, mantida, com frequência, na condição de jovem indefesa e machucada.

Archie tenta ajudá-la, junta as peças do quebra cabeça, entretanto, é vencido pelo tempo e pela própria impotência. Às vezes, ele parece apaixonado pela protagonista e, às vezes, cansado de seu jeito intrusivo. Após o fim do casamento, Archie não sentia nem cansaço e Petulia, à sua maneira, era um imã de sensações.

-Eu mudei você, Archie?

-Você fez de mim um maluco.

Esse é o mais perto de um “eu te amo” que chegamos. Essa não é uma história de amor, mas de apoio emocional. Eles não ficam juntos, isso nem chega a ser cogitado. O que interessa é temporário; a certeza de alguém que se importa com sua condição é mais valiosa do que um romance, muito provavelmente, fadado ao fracasso. Como o filme termina? Não muito diferente da forma que se iniciou, com seus personagens perdidos, sobrevivendo, agora com um pouco mais de esperança.

É importante ressaltar que “Petulia” se situa no fim da década de sessenta, em pleno declínio da geração hippie. Essa decadência é vista, por exemplo, no bar onde Archie e seu melhor amigo se reúnem. O lugar, banhado em vermelho, é ocupado por figuras, no mínimo, estranhas. O fim da cultura “paz e amor” é refletida nos personagens, cuja capacidade de compaixão se esvaiu – ou é inexistente. Sem amor e paz, o que sobra? Qual é a próxima revolução cultural?

Richard Lester adota uma abordagem crua a partir da utilização de câmera na mão, zooms e da manutenção de planos fechados, que geram uma certa claustrofobia. Após o reencontro com Polo, Archie é visto num espaço aberto, em meio a natureza – forma inteligente de potencializar o desconforto anterior. Os magistrais flashbacks ajudam também na construção do humor e de rimas visuais inesperadas.

George C. Scott oferece uma performance delicada, repleta de controle e desalento. Ele aceita a fadiga e só se exalta em momentos que exigem tal alteração. O auge de sua humanidade está no genuíno sorriso que dispara no fim, após Petulia chamá-lo por outro nome.

Julie Christie encarna uma personagem caótica, apavorada e atraente. Seu poder de sedução se confunde com sua vulnerabilidade. Há um certo atrevimento em seu jeito de ser, o que a torna, assim como o filme, difícil de ser descrita.

“Petulia” é uma das obras primas que mais se assemelham à vida real. Não é fácil, não se enquadra em classificações de gênero e não sente a necessidade de dar satisfação ao espectador.

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