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Poucos segundos após o início da projeção, o espectador já se vê diante de algo incomparável. A beleza do plongée que, em meio a chuva, marca os guarda-chuvas coloridos é de outro mundo. “Os Guarda-Chuvas do Amor”, de Jacques Demy, consegue ser, ao mesmo tempo, um musical altamente estilizado e um filme que aborda o amor da forma mais honesta e dura possível. Tudo é cantado e, ainda assim, é impossível não se identificar com os dilemas e as dores enfrentadas pelos personagens. O encantamento pela estética musical no seu primor não diminui o impacto do argumento de Demy, pelo contrário.

A direção de arte, a partir de sua predileção por cores marcantes, sintetiza o amor e suas diferentes camadas. Amarelo, verde e laranja ressaltam as particularidades do mundo idealizado pelo cineasta francês, que aproveita a lógica “farsante” dos musicais. Dito isso, são o vermelho e o azul que atribuem maior complexidade à narrativa, servindo como contrastes de uma força que atinge lados opostos. O vermelho, intenso nas paredes do bar, destaca o amor em seu estado de graça; o azul, presente também na fotografia, confere a melancolia necessária à trajetória dos personagens. Geneviève está quase sempre de rosa ou azul claro, cores que salientam sua pureza. Ela trabalha na loja de guarda-chuvas da mãe, que a proíbe de se casar, afinal, além de ser muito jovem, não pode se comprometer com um sujeito incapaz de lhe garantir uma vida minimamente confortável. Guy é mecânico, cuida da madrinha adoecida e, assim como sua amada, não tem muito no que se agarrar. O amor é a saída para a pacatez; preenche a alma e permite que sonho e realidade conversem entre si.

Como eu mencionei, o filme é inteiramente cantado, o que poderia ser cansativo caso Demy não fosse dotado de um talento invejável para conduzir obras desse tipo. Sua mise en scéne merece ser estudada; a posição dos personagens no quadro e suas movimentações traduzem sentimentos poderosos. A mãe da protagonista não é uma “estraga prazeres”, apenas se preocupa com o futuro da filha, o que fica nítido em sequências delicadas, nas quais, em vez de massacrar a pobre coitada, se aproxima e demonstra preocupação com seu estado emocional. As duas ficam, constantemente, de costas uma para a outra, mas nunca fixam uma posição, reforçando a complexidade da relação, dos sentimentos e a vontade de chegar num denominador comum. Outro detalhe fascinante, que prova o perfeccionismo de Demy, é a variação de temas durante os diálogos, indo da discussão acalorada à melancolia. Os diferentes tons de voz vão ao encontro dos diferentes tons na comunicação.

O casal sofre um baque quando Guy é convocado pelo exército. A cena da despedida, com direito a fumaça do trem cobrindo a protagonista, é de um peso dramático comovente. Geneviève, então, se depara com um teste de resistência e percebe, aos poucos, quão assustadora é a solidão, chegando, inclusive, a ficar doente. Eis que surge Roland Cassard, que se coloca à disposição para ajudar financeiramente a jovem e sua mãe. Ele tinha tudo para ser o “vilão”, o homem rico que pretende acabar com o romance pelo qual torcemos. Mas não, Cassard conhece o amor não correspondido, é gentil e almeja somente a felicidade. O bebê que Geneviève carrega em sua barriga é o símbolo de um amor interminável, de almas gêmeas que, por circunstâncias mundanas, não puderam ficar juntas. Os fades e a neve são fundamentais para expor a passagem do tempo, o vazio e a melancolia. A montagem opta por cortes elegantes e precisos, dando à narrativa uma agilidade notável. Não há um desenvolvimento da relação entre Cassard e Geneviève; as transições rápidas nos levam ao altar, onde a noiva triste se encontra.

Guy retorna e parece não se reconhecer mais. A doçura anterior se transforma em rancor, frustração e cansaço – o que é refletido em sua aparência desleixada. Bebidas e prostitutas fazem parte de seu novo cotidiano; ele precisa dar um jeito de encontrar uma saída. No fim, é tudo sobre a capacidade humana de se reerguer e recomeçar. O desfecho é belo e amargo.

Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo encarnam o estilo de Demy com propriedade e apresentam uma química deliciosa de se assistir. São interpretações que, como o filme, transitam perfeitamente entre o lúdico e o visceral.

“Os Guarda-Chuvas do Amor” é um marco na história do cinema. 

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