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Em 2001, no Festival de Cannes, Nanni Moretti desbancou Michael Haneke, David Lynch e os irmãos Coen, sagrando-se o vencedor da Palma de Ouro. Por mais amor que eu nutra por “A Professora de Piano”, “Mulholland Drive” e “The Man Who Wasn’t There”, devo admitir que o prêmio ficou em boas mãos. O italiano, conhecido por seus projetos de cunho político e autobiográfico, realizou um pequeno milagre.

“O Quarto do Filho” poderia ser um melodrama apelativo ou um filme “pretensioso” em sua seriedade; no entanto, para a nossa sorte, Moretti acertou a mão em cheio, com um drama austero, realista e delicado. Sua abordagem naturalista coloca o espectador em contato com o cotidiano da família principal. Sem perceber, passamos a admirar aqueles indivíduos. Andrea realmente furtou um fóssil na escola? Quando conhecemos o cenário inteiro, percebemos que certas situações não deveriam ser levadas tão a sério. A reação de Paola, a mãe, com a confissão do filho diz muito sobre as boas relações familiares: ela capta a imaturidade da brincadeira e foca na honestidade. Os pais observam Irene, a filha, estudando com o namorado. O que há de especial nesta cena? É óbvio, não? Pelo menos, deveria ser. 

Há uma sequência envolvendo uma cantoria no carro e outra que prova que o fogo do amor continua aceso para o casal. A intimidade do prosaico constrói um retrato genuíno; igualmente poético e direto. Sabemos que algo impactante acontecerá; sabemos que aquele núcleo tão unido e harmonioso será desmanchado. Moretti prepara o terreno sem esforço, apresentando seres humanos fascinantes em diferentes fases. Com a mesma naturalidade, o cineasta “elimina” Andrea, que morre num acidente de mergulho. Os abraços, o velório, os planos-detalhe dos parafusos no caixão… é dilacerante ver o ciclo natural da vida sofrer uma alteração tão repentina. O vazio e a sensação de estar “sem chão” são reforçados por cortes secos e por um fade. Cada um fica em um cômodo; o silêncio compartilhado é contagiante, chegando a arrepiar a espinha.

Giovanni, o pai, é psicanalista e está acostumado a ouvir as aflições mais diversas possíveis. É humanamente impossível estar 100% atento e emocionalmente disponível em todas as sessões – o bom analista conhece suas limitações. Será possível se importar com questões que, comparadas à sua, soam risíveis? Será possível esquecer um pouco de si e da morte do filho a fim de focar em “neuroses banais”? O tom da fala de Giovanni muda consideravelmente. Ele basicamente assume uma função mecânica e, quando se envolve com alguma conversa, não evita o choro. Como olhar para Oscar, o paciente que interrompeu seu último momento com Andrea para atender uma de suas crises de ansiedade? As pessoas se esquecem, mas o psicanalista tem o direito de sofrer e de se afastar por um tempo; afinal, na fila dos humanos, ele está entre os mais sensíveis. “Não tenho mais condições. É simples assim”. As palavras do padre não fazem sentido, machucando mais do que acolhendo. Em casa, a dor é tanta, que as brigas saem sem força. Paola expõe mais suas emoções; Giovanni prefere retê-las, mantendo um semblante dolorido; e Irene flutua entre os cantos, notando que os pais fazem o possível para não tornar o inferno mais incandescente. O fogo do casal é abafado, como se a brisa congelante tivesse invadido a residência sem permissão. Os “respiros”, como, por exemplo, o ato de vasculhar a geladeira e comer um pão, constroem o luto. O mesmo vale para a distância que consome o casal e para o passado hipotético trabalhado pela montagem, que confere complexidade à psique atormentada do protagonista. 

O vermelho, destacado no suéter de Giovanni, símbolo do amor por Andrea, segue lá. Moretti não busca uma resolução e sabe que as coisas podem melhorar, mas nunca voltarão ao normal. Em seu anseio humano, ele tenta dar algum tipo de conforto à família e, de uma maneira extremamente tocante, consegue. Paola intercepta uma carta endereçada ao filho, enviado por Arianna, sua namorada secreta. A possibilidade de encontrar alguém que tenha algo novo e afetuoso a dividir sobre Andrea serve de alento – é como se eles pudessem, pela última vez, revê-lo. Tudo acontece no momento certo; a direção e o roteiro de Moretti são empáticos aos seus personagens. Quando os sorrisos e as risadas surgem, não nos sentimos tapeados pela pieguice; pelo contrário, temos a convicção de estarmos assistindo a algo verdadeiramente comovente. O sol alivia e “By This River”, canção de Brian Eno, escolhida a dedo pelo cineasta, sintetiza a obra por inteiro. 

Nanni Moretti, como de costume, também protagoniza o filme. Sua interpretação, mais contida que o habitual, é de uma sensibilidade marcante – ele não precisa gritar. “O Quarto do Filho” é uma preciosidade.

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