“O Leopardo” é o que se pode chamar de um filme perfeito. É encantador, reflexivo, estonteante, devastador e grandioso.
Preocupado com o seu futuro, o Príncipe Don Fabrizio Salina decide sair da Sicília a caminho de seu outro palácio, em Donnafugata. Ele é o patriarca de sua família, impressiona pela rigidez e pela influência perante todos que percorrem o seu trajeto. Fabrizio tem um estilo de vida muito próprio, que inclui bailes suntuosos e palácios luxuosos. Existe um certo comportamento a se seguir e todos ao seu redor sabem exatamente como agir. Os jantares são verdadeiras aulas de etiqueta e seus hobbys não podem fazê-lo esquecer de sua posição.
A trama se desenvolve no momento histórico em que o revolucionário Giuseppe Garibaldi, com o seu exército de mil homens, conquistou a Sicília, expropriando-a dos nobres, dando início a reunificação da Itália.
A ascensão burguesa não assusta Fabrizio, que se aproxima do prefeito de Donnafugata a fim de promover o casamento da filha do alcaide com o seu ambicioso sobrinho, que fazia parte do exército de Garibaldi. Dessa forma, o Príncipe manteria o seu estilo de vida, construiria uma parceria harmoniosa com a burguesia local e garantiria uma grande fortuna ao seu sobrinho.
O início impressiona pelos planos gerais que exploram as belíssimas paisagens e pela introdução de uma realidade muito distante. Os nobres parecem vampiros, presos em tumbas que, em vez de nebulosas, são douradas, tomadas por afrescos e quadros valiosíssimos. Ninguém ali parece ter personalidade. A única que demonstra sentimentos é Concetta, que se apaixona por Tancredi, contudo, Fabrizio tem planos maiores para o seu sobrinho e destrói o sonho da filha. O protagonista é imponente, elegante e está determinado a manter sua aristocracia intacta. Ele diz que o amor é fogo ardente por um ano e cinzas durante os trinta seguintes. Fabrizio não demonstra afeto por sua esposa, suas escolhas são baseadas em negócios e status.
Todos estão à sua disposição, há um senhor que escolhe a sua roupa para cada refeição e um Padre o acompanha até mesmo no banho. “Você está acostumado com a nudez das almas, a do corpo é muito mais inocente”.
Fabrizio luta para manter um estilo de vida, porém sabe que é um homem decadente, vazio, obsoleto e preguiçoso. Ele declina a proposta de ser Senador da “Nova Sicília” e admite que os sicilianos se recusam a mudanças, pois se consideram Deuses. Fabrizio se coloca nesse pedestal, mas tem consciência de sua fragilidade e solidão. O protagonista nasceu em uma família nobre, logo, não pôde escolher que tipo de homem seria. Sua esposa não representa o seu gosto pessoal, seus filhos não são tão queridos e as únicas partes de sua mansão que conversam com sua personalidade são cinzas e escuras. Fabrizio não começa assim, seu arco permite que seu senso de poder e dominância se dilua a ponto de admitir seu vazio e sua imensa infelicidade.
Ele observa um quadro de um senhor morrendo em uma cama e chora, como se mirasse um espelho. O protagonista não teme a morte, apenas percebe que viveu uma vida de aparências. Fabrizio enxerga na decadência aristocrática o seu fim e precisa lidar com a sua mortalidade.
Ele olha para Angelica – esposa de Tancredi – e imagina o que sua vida poderia ter sido, por isso evita tocá-la. Sua dança com ela é uma despedida de algo que nunca existiu e o último ato de um Príncipe renomado.
Existem duas sequências-chave no filme.
A primeira, quando Fabrizio assume para um membro da assembleia constituinte que ele representa o passado e a vaidade, justificando o porquê de sua recusa para governar o senado. Sua fala é contraditória, pois, ao mesmo tempo em que é honesta e admite os seus erros como ser humano, afirma que nada poderia ser feito e que sua vida já estava predeterminada. Ele não diz isso com orgulho, muito pelo contrário, há muita dor em sua voz e seus passos são em direção à escuridão.
A segunda é a mais icônica e longa. No baile, Fabrizio percebe que não conhece nem gosta verdadeiramente de ninguém, todos ali têm status e era só o que importava. A morte passa a confrontá-lo e a juventude animada o obriga olhar para o passado com pesar.
Os idosos observam a dança sentados, enquanto os jovens destilam sua energia pela mansão, em uma das cenas mais icônicas da história do cinema. Todos caminham na mesma direção, o único que enxerga o óbvio é Fabrizio, que chegou a um estágio de sua vida em que toda a pose e as “conquistas” deixaram de fazer sentido. Durante o filme inteiro não o vemos dar um sorriso que não envolva um negócio ou que não seja falso, conhecemos o seu interior apenas no fim. Há um plano no qual o protagonista observa alguns jovens dançando e uma porta os separa – de um lado, a escuridão é absoluta, do outro, a luz é radiante. Mesmo sabendo que sua condição impossibilitaria qualquer outro tipo de vida, Fabrizio sente falta daquela luz e do ingênuo sentimento de liberdade. Seu final é simbólico e poético.
“O Leopardo” tem inúmeros personagens, mas nenhum chega perto do protagonista. Tancredi é ambicioso e charmoso, enquanto Angelica é sensual e espontânea.
Alain Delon e Claudia Cardinale cumprem seus papéis com perfeição, os dois são carismáticos, talentosos e possivelmente formam o casal mais bonito da história do cinema. Afinal, aquele fogo todo era fugaz ou continuaria aceso por muito tempo?
A trilha sonora é melodicamente rica e marcante.
A direção de arte é um espetáculo. Em termos de grandiosidade e luxo, acredito que nada se compare a “O Leopardo”. Os quadros com rostos são símbolos da decadência, de um passado distante.
Como foi mencionado acima, a mansão é constituída por objetos, cores e pinturas impressionantes. A cena do baile é de uma abundância de detalhes impressionante. Os tapetes, os candelabros e as inúmeras cores ressaltam a riqueza, mas é o quadro do senhor agonizando que dá complexidade ao momento. Os detalhes cinza nas paredes, as portas escuras e o sofá preto não estão ali sem motivo, representando a angústia de Fabrizio.
Os figurinos também são um show à parte. Percebam como as roupas do protagonista vão perdendo cor ao longo da trama. O fraque do prefeito tem o poder de colocá-lo socialmente abaixo dos nobres. O mesmo vale para a gargalhada de Angelica na mesa, que é vista como uma cafonice, quando na verdade, era um raro ato genuíno dentro daquela casa.
A fotografia, no início, é lindíssima, explorada ao máximo por Visconti em seus planos gerais. No entanto, o que mais chamou a minha atenção foi o cuidado dos realizadores com o uso de sombras. Fabrizio é constantemente ligado à escuridão, sempre de uma forma delicada e orgânica.
Luchino Visconti domina a obra com uma maestria ímpar. Seus close ups ressaltam a beleza de Cardinale e o efeito dela perante os homens; suas panorâmicas são elegantes e não chamam a atenção para si; seus travellings, além de conferirem fluidez ao filme, permitem que o espectador compreenda a realidade dos nobres e os conheça – destaque para a sequência na igreja. Sua mise em scéne é maravilhosa, cada personagem está em uma posição milimétrica, que expõe o seu papel na família e o seu estado psicológico. A cena em que Fabrizio e Angelica dançam é uma aula de montagem. Os cortes vão de rosto em rosto, enfatizando, principalmente o de Tancredi, que sente ciúmes.
Acredito que Marlon Brando tenha se inspirado em Burt Lancaster para a composição de Don Corleone. Ambos os atores fazem muito com gestos mínimos e a imponência de Fabrizio lembra bastante a de Don Vito.
O arco do protagonista é significativo e duro. A firmeza, frieza e racionalidade do primeiro e do segundo ato vão se despedaçando, dando lugar a sentimentos reprimidos e momentos de pura sensibilidade. Lancaster fala pouco, são os seus olhos e feições que dizem muito. Corporalmente, sua interpretação também é bastante complexa. No fim, Fabrizio anda encolhido e adoecido.
Eu entrei preparado para assistir a uma obra prima e fui surpreendido com algo a mais.
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