O Senador Ransom Stoddard desembarca na pequena cidade de Shinbone, onde é tratado com carinho e atrai a atenção da imprensa, que desconhece a razão de sua ilustre presença. Ransom está lá para o enterro de Tom Doniphon, um antigo amigo. Um dos jornalistas, curioso e a fim de escrever uma matéria importante, “exige” que o Senador explique a relevância daquele funeral. “O Homem que Matou o Facínora” foi o último clássico realizado pelo lendário John Ford e é, sem dúvida, um dos “westerns” mais subversivos e maduros de todos os tempos. A dialética é a base do roteiro. Ford não escolheu simplesmente atores, mas símbolos do cinema norte-americano. De um lado, John Wayne, a personificação do “herói Western” e da masculinidade; do outro, James Stewart, que, ao longo de sua carreira, alcançou o status de “bom moço” americano.
Chegando numa diligência, Ransom é brutalmente agredido pelo impiedoso Liberty Valance e seus capangas. Tom o resgata e cuida de seus ferimentos. Ransom, à época, advogado, carrega livros de direito em sua mala e afirma que fará o possível para prender Liberty Valance. “Não quero uma arma. Não quero matá-lo. Quero colocá-lo na cadeia”. Tom, nascido e criado naquela região, respeita o idealismo do novo amigo, mas tem convicção de que, em Shinbone, tudo deve ser devolvido na mesma moeda. As ideias do advogado despertam risos nervosos nos demais, principalmente no Delegado, que tem calafrios só de escutar o nome do “facínora”. Preso ao inferno que não imaginava existir, Ransom tenta impactar o povo com a educação que nunca receberam. Suas salas de aula são rodeadas por pessoas de todas as idades; pessoas que não sabem ler e que aprenderam, desde cedo, que armas e violência resolvem qualquer questão. Ford vai na raiz do problema, apresentando coadjuvantes gentis, simpáticos e resignados; sem educação e informação, não há no que se apoiar. Na terra das armas, homens como Liberty Valance são reis.
Ransom levanta a bandeira da criação de um Estado que proteja propriedades e construa escolas para os jovens, indo na contramão dos poderosos pecuaristas, que governam por interesse próprio e, com a ajuda de fora da lei, invadem as terras dos mais necessitados. Nesse sentido, a sequência da votação para decidir os representantes na convenção territorial é simbólica: quando o nome de Ransom é dito, as mãos são levantadas; quando anunciam Liberty Valance, que havia invadido a reunião, ninguém se manifesta, nem mesmo com aquele chicote – símbolo do antagonista – erguido. Pragmático, Tom acredita que, na prática, a arma é, infelizmente, o único meio efetivo de se alcançar a ordem. Não se enganem, ele não é um vilão, apenas representa o outro lado da moeda para a construção de uma sociedade capaz de se livrar de monstros da estirpe de Liberty Valance. Para Tom, o plano aberto em que o vemos numa ponta, Valance, na outra, e Ransom, caído e indefeso, no centro, sintetiza a busca por justiça. Os homens imponentes, de caráter distintos, duelam; enquanto os outros, idealistas ou covardes, caem no chão.
Existe um motivo pelo qual aquela região ser considerada “selvagem”. O Velho Oeste é formado por lendas e por leis próprias; a ascensão de Ransom só desperta mais raiva em Liberty Valance. Nas civilizações minimamente evoluídas, as palavras do advogado seriam, além de empolgantes, dilacerantes; todavia, ali, é a arma de Tom que fala mais alto. Na famosa sequência de duelo, Ransom, usando um avental que ressalta o seu desconforto ao portar uma pistola, sai lentamente das sombras, como um homem que foi obrigado a ir contra a própria ideologia por entender o meio em que está. Antes, aconselhado a ir embora, após atirar no facínora, Ransom é carregado nos ombros – enfim, uma lenda. É justamente o ato que tanto repudia que o leva ao senado e lhe traz uma notoriedade estrondosa. Claro, depois descobrimos que foi Tom que matou Liberty Valance, o que torna a subversão do gênero ainda mais deliciosa. O carismático e másculo John Wayne é esquecido; o desengonçado e sensível James Stewart é imortalizado no Velho Oeste. Em um gesto belíssimo, Tom, com seu tiro no escuro, prova o seu ponto e dá a chance para o herói que as próximas gerações necessitam. Se no presente, Shinbone trocou as diligências e os cactos por rodovias e jardins floridos, isso se deve ao altruísmo de um sujeito que enxergou o futuro e se colocou no passado.
O confronto de ideias entre os amigos se estende ao coração de Hallie, que cuida do restaurante local. Tom, apesar de apaixonado e de ter construído uma casa para quando se casassem, não leva seus dilemas a sério, cortando-a sempre com um: “Enfurecida, você fica linda”. Ransom, por sua vez, a ensina a ler e a introduz a um outro tipo de homem, um que trata as mulheres em pé de igualdade. Ransom não a seduz e, inclusive, faz questão de dizer a Tom que nunca faria isso. No entanto, a escolha passa a ser de Hallie, que, encantada pelo idealismo e pela vulnerabilidade do advogado, desiste do caubói. Ela estava acostumada a receber cactus bem intencionados de Tom e foi perguntada por Ransom sobre as rosas. Engolido pelas sombras, destacadas pela bela fotografia em preto e branco, Tom é muito mais frágil e complexo do que parece. Frustrado, ele não ateia fogo na casa, mas nos sonhos que almejava para o futuro. Na reunião do senado, os destinos são sacramentados: Ransom caminha em direção à porta da celebração; Tom, à do esquecimento e da solidão.
Lee Marvin, com sua voz cavernosa, está apavorante como Liberty Valance, encarnando o mal com um talento notável. John Wayne e James Stewart duelam e se abraçam; suas personas carimbadas estão em tela; ambas válidas, uma ajudando a outra a crescer. A reação de Wayne ao levar um soco de Stewart, orgulhoso do amigo que se impôs, é genial. Esses atores, quando surgem em tela, dominam o espaço e a retina do espectador.
“O Homem que Matou o Facínora” é um espetáculo.