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Rafael Belvedere administra o restaurante da família. Ele é capaz de falar com três pessoas ao mesmo tempo e de proferir os mais diversos palavrões. Cigarros são como água e ele parece ter perdido parte de sua sensibilidade (se é que já teve alguma). Rafael aderiu a uma completa inversão de valores: não visita Norma, sua mãe, vítima de Alzheimer, há um ano, negligencia os anseios de Naty, sua namorada, e não dá a devida atenção a Vicky, sua filha, que se situa no centro dos confrontos entre ele e Sandra, mãe dela e ex mulher dele. O restaurante, à essa altura, é um fardo que não vale a pena ser carregado. Nino, seu pai, lhe pede ajuda com o único desejo de Norma que não foi realizado: um autêntico casamento na igreja. A ideia soa insana, mas parte de um homem que, mesmo após 44 anos casado, ainda tenta surpreender a esposa, que, infelizmente, não opera mais nesta realidade; um homem que mantém a chama da paixão acesa. Quanto mais analisamos, chegamos à conclusão de que a estranheza que sentimos vai ao encontro de estarmos em constante contato com Rafael, que é incapaz de qualquer gesto amoroso. Ele não entende o pai, porque nunca esteve naquela posição.

Em um plano meticulosamente concebido pelo cineasta Juan José Campanella, vemos Norma e Nino em primeiro plano, de mãos dadas, e Rafael, ao fundo, discutindo com clientes e fornecedores. A filha quer ler o poema que escreveu na escola, mas ele não pode deixar de atender uma ligação urgente e o diretor, novamente, ressalta o distanciamento do protagonista com a realidade através de um sutil movimento de câmera. Rafael não é uma má pessoa, o que fica evidente pela maneira como contempla as fotos da família penduradas na parede do restaurante. Elas estão empoeiradas, mas seguem intactas…

Em meio a esse cotidiano frenético e antissocial, Rafael tem um infarto. Na UTI, ele nota que não pode fazer tanto esforço por um restaurante; que não pode se trancafiar numa vida de preocupações. O retorno de Juan Carlos, seu amigo de infância, é preponderante em seu arco. Diferentemente do protagonista, Juan Carlos opta pelo otimismo, está sempre bem-humorado e passou pelo maior trauma possível: a morte da filha e da esposa. A partir de demonstrações de afeto de entes queridos, da percepção de que a vida é curta demais para não estabelecer as prioridades corretas e do baque da “quase morte”, Rafael decide mudar. Ele resolve ajudar o pai com o casamento, retoma uma amizade que lhe traz uma vitalidade perdida, tenta aparar as arestas com Sandra e passa a tratar Vicky com cuidado e amor – a cena em que ela finalmente lê o poema é de uma sensibilidade raríssima: as lágrimas de um homem diante de seus erros. Naty representa um tema delicado em sua vida, afinal, Rafael não pode ser descrito como um romântico incondicional ou um sujeito disposto a escutar os problemas alheios. Naty quer algo que ele é incapaz de proporcionar; quer o tipo de amor que perdura por meio século. Seu pai, ao falar de Norma, exibe um brilho no olhar, como se o tempo parasse e as memórias voltassem à tona num estalar de segundos. Nem todos têm esse brilho; Rafael, certamente, não o tem. Ao se livrar de preocupações, o protagonista se refere a qualquer tipo de estresse, incluindo dilemas de pessoas que o amam. Acontece, que são justamente essas preocupações, as boas, que transformam a mediocridade em poesia; homens apáticos em homens empáticos. Para alcançar a almejada tranquilidade, Rafael terá que abraçar o compromisso e entender que o isolamento é apenas uma forma covarde de negar a própria felicidade.

Há ainda a questão envolvendo o protagonista e a mãe, que, antes de adoecer, vivia desapontada por tê-lo visto abandonar a faculdade de direito. Rafael queria, com o restaurante, provar seu valor e dignidade e o casamento, de certa forma, funciona como uma bela e tardia gentileza. Campanella salienta a condição de Norma em sequências íntimas, nas quais a impossibilidade do diálogo é revertida em um afeto quase paternal – as posições se invertem. Em outros momentos, como, por exemplo, aquele em que Rafael conversa com Sandra, o cineasta não invade a privacidade do antigo casal e permite que eles se movimentem pelo apartamento com a naturalidade necessária.

Dito isso, a melhor cena é aquela em que o protagonista pede desculpas e se declara para Naty. O uso do monitor do interfone é perfeito para reforçar a urgência de suas palavras e a claustrofobia de uma existência vazia. O roteiro dialoga com o arco de Rafael, introduzindo situações engraçadíssimas na medida em que ele começa a progredir. Ricardo Darín é dono de um carisma inigualável. O lendário ator argentino compõe um personagem complexo e disposto a mudar, o que requer um alcance considerável. Seu sarcasmo é tão preciso quanto sua vulnerabilidade.

“O Filho da Noiva” é um filme belíssimo.

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