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“O Aviador” foi indicado a 11 categorias no Oscar de 2005 e venceu cinco delas. Ainda assim, é um dos filmes mais subestimados da carreira de Martin Scorsese. Quem o considera uma obra menor na carreira deste gênio, precisa rever seus conceitos.

Scorsese realiza um épico que nunca deixa de ser íntimo; trata-se de um estudo de personagem minucioso. O cineasta ítalo-americano sempre gostou de protagonistas complexos, com um certo grau de inabilidade social e, em Howard Hughes, ele encontrou uma pepita de ouro. 

Hughes era filho de milionários do petróleo e, assim que herdou o que os pais tinham, colocou em prática seus projetos pessoais. Inteligente e à frente de seu tempo, Hughes é obsessivo a ponto de exigir 26 câmeras para gravar uma única sequência. Hell’s Angels demorou anos para ser finalizado e, durante a festa de encerramento, o protagonista percebeu que o filme deveria ser falado. O que ele fez? Refilmou tudo. Hollywood não estava acostumada com aquele meio de produção; não estava acostumada com um sujeito que gastava milhões sem temer prejuízos. O filme foi um sucesso, mas Hughes deixou a indústria cinematográfica em segundo plano, passando a investir na sua verdadeira paixão: a aviação. Sua empresa, aos poucos, vira uma espécie de festival de especialistas nas mais diversas áreas. O protagonista não se importa em dobrar o salário de cientistas, contadores e engenheiros; sua única preocupação é com a materialização dos projetos. Não interessa se um pequeno reparo custará sete milhões de dólares – para “meros detalhes”, há sempre uma saída. 

Hughes sofre com sérios distúrbios psicológicos, algo pouco pesquisado naquela época. Sua megalomania e fixação por projetos intermináveis (a gaveta está cheia de ideias), dizem muito sobre a sua incapacidade de socializar. Em eventos públicos, como noites de gala, sentimos sua pele arder e seu corpo suplicar por espaço. Ao longo da narrativa, os flashes das câmeras ecoam e disparam como tiros de fuzis, enfatizando a fobia de um homem que detesta o universo das celebridades. Os planos-detalhe e os cortes efusivos reforçam o caráter invasivo de certas interações e o desconforto que qualquer tipo de sujeira ou imperfeição (TOC) causa em Hughes. Nos banheiros de restaurantes, ele usa um sabonete próprio e esfrega as mãos com a força de uma avalanche. Scorsese retrata estes momentos como pesadelos intermináveis – não é sobre lavar as mãos, mas sobre aliviar os tormentos de sua mente. Quando Errol Flynn toca no seu prato, sua reação é de dor e desespero. 

Sem amigos, apenas empregados de confiança, Hughes abraça uma existência nebulosa e triste, assumindo, cada vez mais, sua ansiedade e tendências depressivas. Sua relação com Katharine Hepburn é um dos pontos altos do filme. Carismática, extrovertida e encantadora, Hepburn realmente mexe com as engrenagens do coração do protagonista; não à toa, ele divide uma garrafa de leite com ela. O fato de percebermos tal gesto como uma intensa demonstração de carinho, salienta o trabalho excepcional de Scorsese ao mergulhar na mente turbulenta de Hughes. Todavia, nada fica à frente de seus projetos, o que, eventualmente, afasta Hepburn. Hughes é uma figura trágica, fadada a adentrar um buraco desconhecido. Ele não tem habilidades para vestir máscaras sociais; é demasiadamente honesto para o mundo que habita. Sua descida completa a um universo de fantasmas e distorções é destacada no momento em que passa um considerável número de dias trancado na sala de projeção. As marcas excessivas no rosto jovem e a presença marcante de azul e vermelho não deixam dúvidas: aquele é o seu purgatório. A briga judicial pelo direito de realizar voos internacionais não deixa de ser um motivador de sua fragilização mental, que ganha novos toques de paranoia – ele entra em contato com os gananciosos que estão dispostos a qualquer falcatrua por poder. 

“O Aviador” é, também, uma carta de amor ao cinema. Scorsese, a fim de homenagear a Hollywood clássica, optou por simular o esquema de cores do período, iniciando com o Technicolor de duas faixas, predominado por vermelho e azul – percebam como os campos e as ervilhas ganham tonalidades azuladas – e, posteriormente, com o Technicolor de três faixas, que confere uma vivacidade maior à narrativa. Esse detalhe é fundamental para situar o espectador no tempo, indicando passagens temporais precisas. Os travellings em que Scorsese nos insere em determinados ambientes, como, por exemplo, o set de filmagem, a sala de edição e o restaurante, são de uma elegância ímpar. O cineasta utiliza Split Screen de uma maneira bastante estilosa, aproveitando o fogo para dividir os personagens, enfatizando a crise emocional do protagonista. Gradualmente, Hughes é relacionado às sombras, à escuridão e ambientes vazios ou bagunçados. Até mesmo hospitalizado, o protagonista exige que o suco seja preparado diante de seus olhos, o que é acentuado pelo uso perspicaz de Split Diopter. Os trabalhos de figurino e direção de arte são primorosos, responsáveis pelo macro e pelo micro; pela reconstituição de época e pela caracterização dos personagens. 

Leonardo DiCaprio deveria ter vencido seu primeiro Oscar aqui. Sua performance é detalhada ao extremo, sem cair na caricatura. A forma como ele desvia o olhar para sujeiras “imperceptíveis”, ao mesmo tempo em que não consegue parar de prestar atenção nelas, é o trabalho de um ator que entende e respeita seu personagem. Sua emoção ao ver a estreia de Hell’s Angels é genuinamente tocante. DiCaprio varia entre a vitalidade de um homem que está sempre em movimento e a fragilidade de alguém que reconhece suas questões. Seu rosto jovial é perfeito para que o espectador sinta o impacto do tempo. Cate Blanchett é outra que merece inúmeros elogios. Dar vida a um ícone do tamanho de Katharine Hepburn não é nada fácil e ela atinge o feito de “se misturar” com a pessoa real. 

“O Aviador” deveria ser considerado um clássico do mestre Martin Scorsese.

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