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O cinema proporciona prazeres obscuros ao espectador. Um deles é a possibilidade de acompanhar os passos de dois trambiqueiros profissionais. Juan falha ao tentar aplicar um golpe numa mercearia, mas é salvo por Marcos, que, por dividir a mesma “ocupação”, se identifica com o pobre coitado. O último parceiro de Marcos, que não consegue trabalhar sozinho, sumiu e ele vê em Juan a chance de retornar à ativa. O cineasta Fabián Bielinsky, a partir de um movimento de câmera circular, envolve o espectador e Juan na retórica do mais experiente. Boa parte do filme se passa nas ruas de Buenos Aires, onde a dupla destila todo o seu carisma sacana. Eles estão por aí, no meio da multidão, camuflados. Marcos é esperto, não nega oportunidades e tem a aparência de um pirata, mas não admite ser chamado de bandido. Juan, por sua vez, além de mais jovem, não se sente confortável com algumas atitudes do novo parceiro e tem o rosto do típico “bom moço”. “Como consegue trabalhar com tanto sentimentalismo?”

Em determinado momento, Juan compra um carrinho que remete à sua infância, o que reforça a sua inocência. Ele está provisoriamente nessa vida; até que junte a quantia necessária para pagar a fiança de seu pai, que o ensinou todos os truques e lamenta por ter sido um mau exemplo. Assistir aos pequenos golpes da dupla é um verdadeiro deleite e o roteiro é hábil ao não vilanizá-los – essa faculdade fica para o espectador. De qualquer forma, é inegável que, por mais diferentes que suas personalidades sejam, ambos almejam a sobrevivência e não atacam suas vítimas. Em certo nível, “Nove Rainhas” é sobre a arte de performar, já que, a todo instante, Juan e Marcos interpretam novos personagens e tiram coelhos da cartola. Bielinsky rodou o filme em meio a uma das maiores crises econômicas do país e expõe a selva em sua completude – perto de assaltantes e bandidos de estirpes piores, os trambiqueiros são gentis.

Eis que, após um chamado da irmã de Marcos, que o detesta e trabalha num hotel, os colegas se reúnem com Sandler, um famoso falsificador de selos valiosos. Sem tempo e com a saúde frágil, ele pede para Marcos vender as “Nove Rainhas” a um magnata espanhol. Os golpistas não estão acostumados a lidar com pessoas tão poderosas, todavia, o negócio parece simples e envolve cifras altíssimas. Juan é seduzido pela chance de finalmente libertar o pai, enquanto Marcos…bem, Marcos é um cara de pau. A sequência da negociação é impecavelmente dirigida e montada. Os close ups e os planos-detalhe do papel triturado elevam a tensão a um nível impressionante – em uma narrativa calcada na movimentação constante, pausas são significativas. Tensão esta que também serve ao humor. Sim, este é um filme engraçadíssimo, cujos diálogos fluem de forma espontânea e ágil. E, claro, o contraste entre os colegas, por si, já é digno de boas risadas.

Bielinsky planta pistas, investe nos seus personagens e gera dúvidas, deixando o espectador pronto para a “grande reviravolta”. Quem vai trair quem? Quando isso acontecerá? Os contratempos não são poucos e a dupla corre (literalmente) a fim de aparar as arestas. O valor estratosférico da negociação coloca os trambiqueiros contra a parede e Bielinsky o utiliza para fazer um comentário acerca da ganância humana. Marcos demonstra ser um sujeito patético e desumano. Juan, ainda que não abandone o negócio, repensa suas prioridades. “Nem todos têm a sorte de ter a consciência tranquila”. Há também uma situação envolvendo a herança do avô de Marcos que acentua o seu mau-caratismo.

O desfecho está entre os mais satisfatórios da década de 2000; um show de ironia como poucos. Ricardo Darín é um golpista perfeito, exalando carisma, sarcasmo e ardilosidade com a maestria que lhe é peculiar. Gastón Pauls não fica atrás e compõe um personagem simpático e imprevisível.

“Nine Queens” foi um acontecimento na Argentina e é um dos melhores filmes já produzidos na América do Sul.

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