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As metrópoles enganam. Por trás de carros e ruas movimentadas, estão pessoas perdidas, presas ao que aprenderam a considerar aceitável. A trilha sonora à base de um piano minimalista evoca um suspense peculiar à São Paulo, uma cidade, assim como Nova Iorque, repleta de nuances.

“Eu não me sinto bem em lugar algum”, diz Nelson ao seu par romântico, que se afasta após perceber a completa desconexão entre os dois. O plano de perfil do personagem, com parte do rosto imerso às sombras, é bastante significativo. Nelson é um sujeito de classe média alta, vive bem, porém questiona os dilemas da alma. Sua solidão é crônica, ele não se sente bem na própria pele e, por mais sensível que seja, não encontra um par capaz de preencher seu vazio insuportável.

Nelson habita um cotidiano enfadonho, de falsos prazeres e está cansado da mesmice.

“As mesmas coisas sempre”. “Vou trabalhar dormindo em pé”.

Luisinho, por outro lado, é uma figura patética, que avisa a esposa que vai sair e dorme fora de casa. “Eu não tenho jeito para consolar ninguém. Estou procurando quem me console”. Ele vaga pelas noites paulistas em busca de alguém, de uma farra, de algo que justifique sua existência. Luisinho é grosseiro e agressivo com as mulheres – na sua visão, objetos que devem satisfazer suas necessidades mais primitivas e egoístas.

Nelson não queria sair, mas não tinha uma desculpa convincente para declinar do convite. Os dois, então, rodam por bares, boates e restaurantes variados. Chegamos a conclusão de que eles não são estranhos: São Paulo está rodeada de figuras melancólicas e perdidas. Walter Hugo Khouri explora o rosto humano através de close ups que revelam uma tristeza contrastante ao barulho das ruas. Sua abordagem é tão íntima, que, em uma situação, ele opta por planos-detalhe das mãos e dos olhos de uma personagem qualquer, cujo olhar denota um abandono profundo.

Em determinado momento, uma conhecida dos dois se aproxima e fala sobre o relacionamento aberto que mantém com o marido, agarrado com outra mulher na mesa ao lado. Em outra cena, um amigo de Luisinho o exalta: “um bom vivant. Está aproveitando enquanto é tempo”.

O que é o casamento? Apenas uma convenção a qual os seres humanos se apegaram? Cuidar da esposa e dos filhos não deveria trazer algum tipo de felicidade? “Aproveitar a vida” significa dormir com o máximo de mulheres possíveis?

Este mesmo amigo, acompanhado de duas prostitutas, se contenta com a própria decadência. “Elas gostam de sair comigo, porque tiram o quanto querem”.

Mara e Regina, as prostitutas, decidem acompanhar Luisinho e Nelson. O quarteto vai para um apartamento luxuoso, onde o mais animadinho exige reações e comportamentos cabíveis em seu universo particular, no qual é um tremendo mulherengo. Ele não só abandona sua esposa diariamente, como também é rejeitado por todas as mulheres que aborda, sendo obrigado a apelar para aquelas que não negam uma boa gorjeta.

Nelson pouco fala, está sempre raciocinando, pensando no buraco negro que assola sua alma. Seu ódio/desinteresse não é em relação aos outros, mas a si mesmo. Ele não tem forças para dizer o que pensa, apenas aceita a repetição que lhe foi imposta. A solidão física talvez seja perigosa, então ele segue seu amigo, embarcando em relações e encontros insignificantes.

Luisinho não raciocina – pelo menos não demonstra -, porém, no fundo, divide a mesma condição de Nelson. Os paralelos estabelecidos entre os quatro são notáveis.

Regina é uma falastrona, se comporta como uma prostituta tradicional e, contanto que o dinheiro esteja na sua bolsa, aceita qualquer coisa. Ela incorpora essa persona com propriedade, provavelmente se esqueceu de sonhos antigos e da personalidade que um dia julgou ser sua.

Mara é profissional, respeita os seus clientes, no entanto, é romântica e se incomoda com certas fantasias. “Aqueles com quem me sinto bem, me esquecem e não me procuram mais”. Ela tenta criar vínculos com os clientes, se esquecendo, às vezes, que eles estão ali somente pelo seu corpo. Os dilemas de Nelson dialogam com os de Mara e os dois, deixando de lado a brevidade daquele encontro, criam um vínculo fascinante.

Em contrapartida, Regina e Luisinho, por se colocarem num patamar similar, combinam. Ambos aproveitam o que o outro tem a oferecer e, muitas vezes, se humilham. Ela o provoca, afirmando que, sem dinheiro, nunca arranjaria uma mulher. Ele usa a condição financeira para rebaixá-la ao máximo – o embate de classes é brilhantemente orquestrado.

A infantilidade de Luisinho é quase sádica. A trilha assombrosa e o plano-detalhe dos olhos de Regina ressaltam o pânico de Mara.

Khouri, invariavelmente, posiciona Nelson no canto do quadro, reforçando seu desconforto geral – consigo e com a situação. O silêncio toma conta da tela quando o quarteto se espalha pelo apartamento. Em meio à escuridão, aqueles rostos desolados buscam algum consolo. A chuva e as janelas fechadas conferem uma certa claustrofobia, contraposta quando eles tiram as roupas e decidem se molhar – a purificação, a busca por dias melhores.

O cineasta dá uma atenção especial aos espelhos e a um projetor. A ideia é clara: por mais que essas pessoas tentem esconder suas inseguranças e fragilidades, tais objetos, assim como a câmera, revelam imagens em sua totalidade. Nada de especial acontece à noite. Nada de especial acontece na vida dessas pessoas.

No fim, Luisinho convence Nelson a ir a outro encontro, a mais uma fuga noturna. O retorno à normalidade é repleto de rituais – a esposa de Luisinho já deve ter ideia do que as flores significam.  

Mara e Regina são largadas no meio do nada, numa rua qualquer, como animais abandonados. Elas estão acostumadas, é a história de suas vidas.

Khouri tem uma familiaridade com São Paulo. A intimidade na sua maneira de filmar a cidade é particular. A escuridão e o uso de sombras são fundamentais na construção dos personagens e de suas psiques.

Com ecos de Michelangelo Antonioni, “Noite Vazia” tem um título bastante apropriado, que poderia, inclusive, estar no plural. Uma obra prima distinta sobre seres que fogem da realidade e reclamam da ilusão.

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