“Nashville” é um filme que não permite rótulos. É um grande mosaico social. Na verdade, bem mais que isso. É uma homenagem à cultura norte-americana e também uma sátira. É uma crítica ácida à política, aos candidatos fantasmas e aos meios de se chegar ao poder. Um filme cujo protagonista é a própria cidade, que possui uma cultura muito específica e é habitada por seres peculiares e complexos. Altman apresenta uma série de personagens e nenhum deles é deixado de lado. Todos têm seu espaço, bons arcos e relevância narrativa. Todos estão em Nashville e todos têm algo a dizer. A forma como o roteiro amarra os conflitos pessoais é irretocável, o cinema nunca foi tão cuidadoso com seus personagens.
É praticamente impossível falar sobre o que é “Nashville”, não por ser vazio, mas por ser denso demais. Altman cutuca, ri, respeita, idolatra e critica tudo. Praticamente todas as cenas possuem duplas conotações, nossas sensações variam bruscamente, porque nosso olhar está em constante movimento.
Nashville é uma cidade conhecida pela música country e suas celebridades locais. O candidato à presidência, Hal Phillip Walker, estrategicamente, prioriza a sua campanha por lá.
A música faz toda a diferença aqui, não só pela representatividade cultural, mas para o desenvolvimento narrativo e para o arco dos personagens, que estão no topo, em decadência ou buscando um lugar ao sol.
Barbara Jean é a grande estrela de Nashville. Ela aparece para essa semana festiva, mas claramente está debilitada. Em determinado show, a cantora para de cantar e começa a citar situações aleatórias de seu cotidiano – sinal claro de uma pessoa instável. Seu empresário e marido, é um homem controlador, que sim, a ama, porém tem prioridades, sendo a maior delas a carreira da esposa. Discretamente, ele força um retorno antes do previsto, age como um marido compreensivo, mas está sempre pensando na imagem de Barbara, que deve se manter intacta. As falsas aparências também chamam bastante atenção. Entre as estrelas locais, Barbara é a maior e mesmo assim, existe uma rivalidade muito grande. A briga de egos está no ar e o principal embate é com Connie White, que é tida como amiga de Jean, mas no fundo torce pelo seu mal-estar da rival, pois assim terá mais espaço em eventos importantes.
Haven Hamilton é um ícone em decadência. Seu estilo patriota é datado e sua voz não é mais a mesma. Seu filho tem talento, mas essa possibilidade nem é cogitada, pois traria uma rivalidade desnecessária. Haven diz não ter um lado político, porém quando o posto de governador lhe é ofertado, seu candidato favorito vira Hal Philip Walker. Ao mesmo tempo em que Haven é um autêntico morador de Nashville, que se orgulha e honra a cultura local, ele também é motivo de chacota – um homem sem princípios, venal e desonesto com o filho.
Todas essas estrelas locais conversam e fingem ser grandes amigos, mas a artificialidade é notável e Altman a retrata da forma mais honesta possível.
Opal é uma jornalista da BBC, que está lá para realizar um documentário. É uma aproveitadora nata, do tipo que segue a maioria, é indelicada, muda de par pelo status e finge adorar a todos, quando, na verdade, quer apenas ouvir algumas frases de efeito. Opal é desprezível em todos os níveis, principalmente nos momentos em que tenta bancar a gente boa.
Linnea é uma mãe dedicada e uma mulher que sustenta um casamento em frangalhos. Ela recebe ligações de um jovem músico e sente a tentação. Cansou das aparências, de fingir que está tudo bem e decide encarar uma nova experiência, mesmo que seja apenas pelo sexo. A personagem é interessante, pois mostra que a segurança tão exaltada pelos desesperados não é lá tão especial. Um casamento não sobrevive sem carinho e isso não existia mais.
Tom é o galã da cidade. Todas dizem que o amam, mas não recebem uma resposta. Ele coloca suas músicas enquanto transa, recebe elogios e fica quieto. Tom é o tipo do cara que sabe exatamente o que dizer, por isso suas letras são tão belas, mas não sinceras. O único “eu te amo” dito pelo personagem é em linguagem de sinais. A minha cena favorita é a que Tom canta “I’m Easy”, uma balada conquistadora. Quatro mulheres acreditam que aqueles versos foram escritos para elas; uma chora, outra ri. Altman foca nos rostos e a montagem expõe o quão canalha e insensível é Tom, que brinca com sentimentos verdadeiros.
Sueleen Gay tem uma das piores vozes de todos os tempos, mas não sabe disso. Ela canta em público e é um vexame gigantesco. Sueleen é o exemplo da moradora de Nashville, que observa aqueles ídolos, entende a cultura local e deseja seguir aquilo. Ela não quer ser uma cantora, quer ser a nova Barbara Jean. Esse delírio resulta em uma das cenas mais icônicas do filme. Sueleen canta em um evento privado para eleitores de Walker e não consegue apresentar nada minimamente razoável. A cena começa em um tom cômico, pelas reações alheias, mas fica cada vez mais triste, até que a personagem é obrigada a fazer striptease. A ingenuidade a leva a um lugar nefasto, repleto de homens sem compaixão. Mais um grande exemplo da genialidade de Altman, que nos faz rir e gradativamente nos desarma.
Albuquerque segue a mesma linha de Sueleen, a diferença é que esta canta muito bem. Nashville tem seus ídolos intocáveis, que silenciosamente derrubam promessas e odeiam qualquer tipo de ameaça. Albuquerque é uma cara nova, logo, não é bem vista e sempre tem oportunidades negadas. Seu momento triunfante é no mínimo irônico. A morte de Barbara Jean no último show levanta algumas ideias. Haven pede para as pessoas continuarem cantando, nada pode parar Nashville. É um momento que reafirma a força da cultura local, movida pela música country, que dita o cotidiano daqueles cidadãos, mas também denota uma tremenda falta de bom senso. A humanidade se esvai completamente, alheia ao fato de uma pessoa ter morrido. Albuquerque só consegue a grande chance, por causa de um assassinato. Ela não está nem aí, agarra a oportunidade e solta a voz, que por sinal é excelente. A bandeira no fundo é uma bela tirada de Altman, que questiona os valores americano. É uma cena poderosa, que nos mantém imóveis.
L.A Joan é uma jovem deslumbrada, que circula perante os status. Sua avó está morrendo e ela não parece preocupada. Sempre que tem a oportunidade de visitá-la, Joan tem algo melhor para fazer, causando uma autêntica irritação no espectador. Seu avô é o personagem mais doído do filme, o que passa pela maior tragédia.
O homem do triciclo é fantástico. Ele não faz nada, além de andar naquela moto altamente estilizada. Um personagem cuja única função é mostrar a tendência da época e enfatizar a cultura local. Desde cedo, Jeff Goldblum era cool.
Tudo nos leva a John Triplette, o assessor de Hal Phillip Walker, que tenta seduzir os músicos para participarem do comício. Na minha opinião, este é o melhor personagem. Triplette é falso, mentiroso e sedutor. É a personificação máxima da política norte-americana. Ele bajula os músicos, elogia seus trabalhos e logo depois ri de absolutamente tudo que Nashville representa. Triplette promete coisas que não cumpre, percebe que está por baixo, decide fazer uma oferta absurda e não para até conseguir o que deseja. Ele é carismático e é de longe o personagem mais engraçado.
Ainda temos o protagonista: Nashville. Um lugar movido pela cultura, tendências particulares e essas figuras que fogem de qualquer convencionalidade. Nashville respira música. As grandes estrelas são o que são, pois cantam bem. Os que estão por baixo não sonham com nada, além dos grandes palcos. Não há muito espaço, a briga de egos é intensa e silenciosa. Assistir um show em Nashville parece uma experiência religiosa, o público sabe a hora exata de reagir e não aceita qualquer tipo de apresentação. A música transcende o espetáculo e vai para outras áreas, como a política e a religião. As roupas são importantíssimas, o estilo country é inconfundível. Os bares também são bem específicos, sempre com apresentações ao vivo e uma atmosfera que consegue ser soturna e alegre ao mesmo tempo. A cena de Sueleen é o maior exemplo disso.
Nashville é uma cidade tumultuada, assim como o acidente no início. Parece agradável, convidativa e tem personalidade, mas é podre, repleta de sentimentos conflitantes, disputas de ego e preconceito.
Eu iria a Nashville? Não sei.
Acho fascinante a forma que Altman enaltece a cultura local, demonstrando um amor profundo pelas raízes americanas. Porém, ele admite grandes defeitos.
O candidato fantasma é impressionante. Um homem que movimenta uma cidade inteira, mas não fazemos ideia de como ele é. Walker nunca dá as caras, apenas ouvimos sua voz em um megafone. Será que aquele é mesmo o candidato? Será que havia um? Por que votamos em alguém que nem conhecemos?
O elenco é fantástico, todos ali parecem moradores de Nashville, principalmente Henry Gibson, com sua camisa bastante peculiar.
É impressionante como Altman consegue concentrar uma quantidade absurda de personagens em pouco mais de duas horas. Há de se elogiar também o primoroso trabalho de montagem, que assim como em outros filmes do diretor, une seres complexos em um vasto território. As cenas conversam entre si, formando assim um belo mosaico social e uma lógica cênica muito interessante.
“Nashville” apresenta uma coesão estrutural invejável. Tudo está em perfeita harmonia. Cada personagem possui uma motivação muito clara, eles transitam entre espaços, se relacionam, se enganam, se usam e continuam cantando. “Nashville” é o tipo de filme que só melhora a cada assistida. Uma obra prima absolutamente irretocável, realizada por um dos maiores gênios da história do cinema.
O que você achou deste conteúdo?
Média da classificação / 5. Número de votos:
Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!