Os grandes artistas são aqueles que têm algo a dizer. A arte “alegre” não tem a mesma potência da arte “melancólica”. Por que? O ser humano não precisa validar sua felicidade, mas anseia por respostas que dialoguem com suas maiores dores e angústias. Claro, esta é uma afirmação subjetiva e que, à primeira vista, pouco importa; todavia, enquanto assistia a “Naked”, não pude deixar de notar que filmes deste tipo me atingem com uma urgência maior. É como uma sessão de terapia com um terapeuta mais inteligente do que o seu ou uma conversa com um amigo que não foi intoxicado por mídias sociais.
Mike Leigh não está interessado numa trama, mas em dissecar seu protagonista, uma figura que divide semelhanças com Meursault, Travis Bickle e Alex DeLarge. Sem rumo nem casa, Johnny vaga por ruas escuras e pálidas. Leigh o apresenta em um beco, transando como um animal selvagem, com a câmera na mão, imprimindo uma atmosfera crua e caótica. Ameaçado pela mulher, Johnny foge de Manchester. Em Londres, ele vai à casa de Louise, uma antiga namorada, que vive com Sophie. Na sequência em que Johnny entra em erupção e retorna aos caminhos solitários das ruas inglesas, Leigh limita o espaço da casa, utilizando panorâmicas para ressaltar o aprisionamento do protagonista. “Então, agora só querem excitação barata e não importa se é de baixo nível ou vazia, só precisa ser novo”. São palavras de um homem que vive com os olhos muito abertos; um homem que rejeita normas sociais e despreza sua própria espécie. Em tempos sombrios, a intelectualidade pode ser um castigo. Aqueles que se consideram felizes ou satisfeitos estão quase sempre distraídos.
Johnny vive num estado crônico de sarcasmo e acidez, derramando seu veneno sobre todos que cruzam seu caminho. Ele não crê em relações humanas, pois acredita que o ser humano foi uma criação mal sucedida, oriunda de um Deus perverso e diabólico. Johnny diz estar no purgatório, não à toa, vive como um andarilho, sem amarras, com os pés no chão e a bolsa nas costas. Ele tem 27 anos, mas parece ter 40. O protagonista personifica o peso da trajetória intelectual do homem num universo que oferece apenas respostas autodestrutivas. Em um de seus momentos mais amigáveis, Johnny passa um tempo na casa de uma garçonete. Sua forma de demonstrar agradecimento é autêntica (logo, pouco convencional e intrusiva), o que leva a personagem a reagir com medo e raiva. Johnny chega a se ajoelhar e a se encolher, provando que, por trás da casca áspera, há uma fragilidade inabalável. É fácil detestar o protagonista e encher a boca para afirmar que ele não passa de um sujeito petulante e odioso; difícil é sair da zona de conforto e perceber que muitas verdades estão sendo ditas. Você pode até não concordar com Johnny, mas não pode negar que sua retórica, calcada num amplo domínio cultural, é poderosa.
Ao longo de suas andanças, Johnny esbarra em algumas pessoas. A cada “encontro”, suas convicções se fortalecem, indo na contramão de uma possível “redenção”. Leigh investiga parte da sociedade e chega à conclusão de que a ingenuidade é um ingrediente para o bem estar (mesmo que este seja apenas um disfarce). Fingir que está tudo bem ou que o futuro é cheio de possibilidades é a resposta para um presente decadente e miserável. Johnny destrói a idealização amorosa de Sophie e deixa Brian, um segurança, atônito com sua visão sobre a humanidade e Deus. “Porque a evolução não terminou. O homem não é o ser máximo”. Para o protagonista, passado, presente e futuro formam uma única unidade; trata-se de uma condição imutável.
— Já viu um corpo morto?
— Somente o meu.
Ao não tomar banho, mantendo uma aparência desleixada, Johnny devolve ao mundo a indiferença que sente. Suas roupas escuras e a verborragia excessiva são marcas do luto por existir. Não sabemos o que aconteceu para que Johnny tenha assumido tal estilo de vida, mas vemos as cicatrizes e não temos dúvidas de que seu olhar crítico parte de um lugar profundo. É essa honestidade cega que o torna tão interessante (e o título tão apropriado). Não existem truques baratos; somos convidados a observar as trevas que percorrem as esquinas e os quintais de casa. É sobre perspectiva – e Johnny nos oferece um banho de niilismo. Leigh, que venceu o prêmio de melhor direção em Cannes, registra tudo com uma crueza notável, guiando o protagonista pelos espaços mais obscuros de Londres, retratada como um centro urbano soturno e fantasmagórico. A trilha sonora é suave e opressiva, conversando com a natureza complexa de Johnny e funcionando como o motor para os seus passeios pelo purgatório.
David Thewlis, que também foi premiado em Cannes, oferece uma das performances mais viscerais da década de 90. Com intensas camadas de cinismo e amargura, Thewlis constrói um personagem tragicamente fascinante de se acompanhar. “Naked” é a obra prima pela qual Mike Leigh deve ser lembrado.



