A família Flax é bem peculiar. Charlotte se compara à Virgem Maria e está sempre reprimindo anseios comuns a uma adolescente de 18 anos. “Como uma mulher pronta para pecar”, diz ela à sua mãe. Na escola, a protagonista evita contato visual e observa as colegas, sentindo um misto de horror e curiosidade. A religião é, no fundo, um escudo que a protege de inseguranças e do medo de experimentar. O turbilhão de emoções está lá, preso em seu peito, exposto pelo voiceover, recurso que confere leveza à narrativa e que nos coloca em contato com as contradições de Charlotte.
Rachel, a mãe, é conhecida por não ficar mais de dois anos em uma cidade. Ela criou as filhas sozinha e admite que não foi introduzida a um manual de instruções. Suas constantes fugas denotam, ao mesmo tempo, egoísmo, afinal, suas garotas não desenvolvem habilidades sociais – o que é refletido no fervor religioso de Charlotte –, e um desejo ingênuo de se manter jovem. A liberdade citada pela personagem é uma grande farsa, uma ilusão para quem não quer se responsabilizar por coisas mais importantes. Ela não estabelece relacionamentos, gosta de estar na “pista”, acabando, assim, com a chance das filhas terem uma figura paterna no confuso cotidiano.
Charlotte e Rachel concordam em discordar. As interações entre as duas são repletas de sarcasmo, levando o espectador a duvidar se existe ali, de fato, algum laço sanguíneo. Os figurinos destacam essa diferença brilhantemente. A mãe veste roupas que marcam o seu corpo, chamando a atenção dos homens; a filha, por sua vez, usa uma bota antiquada e vestidos que remetem à castidade eterna. Na nova cidade, Charlotte se apaixona por Joe, que é apresentado de costas para o mar, na direção da luz, como um anjo que veio à terra. Ela fala sobre pensamentos impuros e esconde seus sentimentos a partir da rigidez física. Rachel conhece Lou, um lojista simpático. Ele estranha o modo da família Flax se comportar à mesa e fica abismado com a falta de diálogo. Quando o desejo vence a pureza, a protagonista se vê rodeada por símbolos religiosos e cai numa espiral de culpa, acreditando, inclusive, que está grávida. Lembrando que Charlotte apenas beijou Joe. Sim, esse é o tipo de relação que ela mantém com a mãe.
Lou não tem pressa, cuida bem das garotas e respeita a personalidade complexa de Rachel, todavia, não suporta o descaso por parte da parceira, que o trata como um cara com quem ela dorme. Na idade adulta, o limbo é uma posição insuportável. Você precisa saber se pode investir tempo e afeto ou se deve esquecer e partir para a próxima. Novamente, Rachel se prova imatura e injusta, deixando claro o porquê de nunca ter se casado. A beleza do corpo não vale de nada sem a beleza do compromisso. Os processos naturais da vida existem por uma razão e ela tenta, a todo custo, violá-los.
O amadurecimento de Charlotte também é traduzido em seu figurino. A aparência renovada, as roupas mais atraentes e o sapato – tchau, bota – ressaltam as pazes feitas consigo mesma e a compreensão de que o comportamento natural humano não é uma ofensa à religião. Como mencionei, a protagonista e Rachel batem cabeça variadas vezes e a resolução encontrada pelo roteiro para que as duas, enfim, conversem e abracem a harmonia é apelativa. Não existe um senso de progressão ou situações orgânicas em que notamos uma sutil aproximação. Tudo é deixado para um desfecho meloso e óbvio, no qual uma “quase tragédia” resolve o caos.
Claro, ainda temos Kate, a caçula prodígio na natação, interpretada por Christina Ricci, que é, de longe, a melhor personagem do filme. Bob Hoskins traz um tom sensível e cômico à narrativa, servindo de elo para uma família remendada. Dito isso, são Cher e Winona Ryder quem dominam o espetáculo. Elas encarnam personagens difíceis e fiéis às suas personalidades, porém, de alguma forma, se amam.
“Mermaids” é divertido e bem escrito, mas perde a chance de ser excelente.