“Megalopolis” foi facilmente a maior experiência que eu já tive numa sala de cinema. Não pelo público, até porque a sessão estava vazia, mas por constatar que Francis Ford Coppola continua sendo o cineasta mais “experimental” e corajoso de Hollywood.
Aos 85 anos, o mestre responsável pela trilogia “O Poderoso Chefão” e “A Conversação” finalmente realizou o seu projeto mais pessoal, cuja ideia surgiu ainda na década de 70. Seria utópico pensar numa massa de aplausos a “Megalopolis”, afinal, estamos falando de uma obra que não preza por uma uniformidade narrativa e que coloca a trama abaixo de suas ambições estilísticas.
O roteiro, devido às diversas reescrituras, adequando-se aos acontecimentos históricos contemporâneos, ficou inegavelmente inchado. Posso dizer a verdade? Isso pouco importa. Peguemos, por exemplo, a sequência em que um satélite soviético se choca contra a Terra, destruindo parte de “Nova Roma”(leia-se, Nova Iorque). Embora a rápida referência ao atentado às torres gêmeas afete pouco a trama, o contra-plongée que evoca a imponência de prédios tomados por tons avermelhados e pelas enormes sombras de pessoas acuadas é fantástico.
Esta é uma gigantesca homenagem de Coppola aos seus alicerces artísticos, que o moldaram desde o início de sua carreira. As traições da Roma antiga se misturam com a literatura shakespeariana, com direito a uma intensa teatralidade, destacada por todos os intérpretes através da gesticulação e da entonação declamatória.
A cena em que Cesar e Julia caminham pelos “andaimes suspensos” e se beijam funciona nesse universo, pois Coppola adere a diferentes tipos de linguagem, assumindo a farsa sem culpa alguma. Ao mesmo tempo em que enxergamos particularidades de uma cidade fictícia, como, por exemplo, as estátuas desmoronadas e a iluminação brilhosa, também vemos a boa e velha Nova Iorque; a boate do início e o comportamento geral são marcas da sociedade contemporânea, todavia, os figurinos e a maquiagem parecem ter saído do império romano; os conflitos políticos e sociais atuais são comparados aos golpes e traições da Roma dos Césares.
A fotografia fomenta uma aura fantasiosa e constrói, dentro desse exagero, uma atmosfera nebulosa e carregada, ressaltada por tons esverdeados e pela escuridão, contrastando com o dourado saturado, que traz alguma esperança e está ligado a sentimentos poderosos.
A direção de arte fica entre a exuberância e a cafonice, flutuando entre tendências futuristas, do presente e inspirações romanas. O Coliseu, onde acontece uma apresentação de uma jovem cantora, é uma referência aos épicos realizados na Era de Ouro Hollywoodiana.
Coppola estava tão interessado em experimentar combinações inusitadas que, em determinados momentos, a tela se fecha ou se abre em formato de círculo, como era comum no período do cinema mudo, e, em outros, ele opta por uma abordagem expressionista, realçada a partir do uso de cores específicas e de cenários “deformados”. Nesse sentido, a predileção por ângulos holandeses salienta a ganância e as mentiras por parte de alguns personagens.
A montagem abusa da sobreposição de imagens e de Split Screens, tendendo, inclusive, a simular a lógica de tríptico, o que também reforça a grandiloquência do projeto. Coppola testa os limites da linguagem cinematográfica e concebe uma narrativa que desafia o espectador e que se vale, em suma, de estímulos técnicos e visuais hipnotizantes. Essa bagunça “artificial” deveria fracassar, todavia, por algum motivo, funciona. Não existem utopias cinematográficas, mas existe um mundo em que os cineastas utilizam todas as suas ferramentas para realizar algo que, atualmente, é raríssimo. Megalopolis é monumental; Francis Ford Coppola é Cesar Catilina.
Na trama, Cesar Catilina, interpretado por Adam Driver, que reafirma o posto de ator mais talentoso da atualidade, é um arquiteto brilhante e audacioso que deseja, a partir do Megalon, uma substância descoberta pelo próprio, reconstruir a cidade de “Nova Roma” e constituir uma utopia. Vivido por Giancarlo Esposito, Cicero, o prefeito local, é o seu principal adversário.
A forma como Cesar é apresentado e sua postura nos levam a concluir que trata-se de um embate entre o artista e o burocrata. A rejeição do protagonista pode, inclusive, ser interpretada pela ótica da atual relação entre os grandes estúdios e os cineastas – algo que atrasou os planos do pobre Francis Ford. Para apimentar a situação, Cesar se apaixona por Julia, filha de Cicero.
Apesar da forte rivalidade, que se alastra à mistérios do passado, nenhum deles é o antagonista. Este posto é ocupado por Clodio Pulcher, que é movido pela luxúria e pensa apenas no poder e na herança de seu tio, o homem mais rico do mundo. Ainda temos Wow Plantinum, uma jornalista sensacionalista tão gananciosa e ardilosa quanto Clodio – só que mais inteligente.
A dupla é interpretada por Shia LaBeouf e Aubrey Plaza, ambos em estado de graça e entregues à liberdade proporcionada por Coppola. Em relação aos personagens, destaco Cesar, que veste uma máscara de descaso e frieza, escondendo seus verdadeiros valores. A morte da esposa ainda o atormenta e o álcool serve de escudo contra possíveis novos desafios. O protagonista é um sujeito apaixonado por arte, pela possibilidade de vislumbrar um futuro otimista e pela sensação de estar apaixonado. Em meio ao seu caos interno, Julia surge como a única luz possível de tirar a Megalopolis das sombras e do papel. Todos os personagens são símbolos contemporâneos e/ou históricos, no entanto, o roteiro não os restringe a somente essa possibilidade, conferindo variados graus de motivação e personalidade a cada um.
A analogia com o Império Romano é pertinente, contudo, Coppola, no fim, abraça o otimismo utópico. Talvez seja ingênuo pensar em dias melhores e mais justos… o cinema deixa o espectador sonhar.