Charlie e Nicole estão prestes a se divorciar. Ele é um jovem diretor de teatro extremamente bem-sucedido que veio de Indiana e já é mais nova-iorquino do que qualquer outro nativo da Big Apple. Ela era uma atriz de filmes adolescentes que acabou se juntando ao marido e se tornou a protagonista de todas as suas peças “vanguardistas”.
O filme começa em uma espécie de dinâmica entre casais e cada um precisa ler o texto que escreveu sobre o outro. O espectador tem acesso a esses sentimentos, eles não.
“Marriage Story” é uma obra dura e comovente, sobre união e como os indivíduos precisam se adequar quando estão em um relacionamento; sobre amor e sentimentos velados.
Charlie sempre deixou claro que não gostaria de envolver advogados na separação, mas, ao entrar em contato com Hollywood – ambiente tóxico -, Nicole é induzida a contratar Nora, que, a princípio, parece uma mulher amistosa, cordial e sensível, se provando, ao longo do filme, todavia, uma pessoa gananciosa, falsa e insensível. Charlie estava no auge, sua peça estava a caminho da Broadway e ele havia recebido uma bolsa MacArthur, dada somente para gênios. O que vemos é um homem perdido, pego de surpresa, tendo que montar sua peça em Nova Iorque, ao mesmo tempo em que precisa estar perto do filho em Los Angeles a fim de convencer o júri a lhe conceder a guarda compartilhada.
É óbvio que tomamos o partido de Charlie, não só por ele ser o protagonista, mas por ser um alter ego do próprio diretor, que passou por uma situação similar.
Charlie estava feliz e, repentinamente, percebeu que seu casamento tinha terminado. Faz um acordo verbal com Nicole para evitar maiores problemas e é traído, sendo obrigado a gastar um dinheiro que não tem, correr atrás de escritórios nos quais os advogados tratam os clientes com uma rara indelicadeza ou são excessivamente “lentos”, alugar uma casa numa cidade que detesta e reavaliar toda a sua carreira. Charlie perde praticamente todo o dinheiro de sua bolsa, sua peça é cancelada e os argumentos de sua “adversária” são muito mais contundentes dentro de um tribunal. Henry, seu filho, está na “fase da mãe”, conseguindo a proeza, claramente sem intenção, de magoar profundamente aquele que está remando contra a maré para mantê-lo por perto.
Omissões e mentiras permeiam a trama e, em nenhum momento sequer (salvo em um único), Charlie perde a razão, demonstrando sempre ser um homem tranquilo, amável e cuidadoso. Obviamente, ele não é perfeito e Nicole está longe de ser uma lunática ou uma antagonista.
O protagonista a traiu, fez promessas que nunca cumpriu, como passar mais tempo em Los Angeles – cidade natal de sua esposa -, nunca demonstrou muito interesse nas emoções da parceira, priorizando o trabalho – egoísmo – e tinha o péssimo costume de fazer pouco caso dos sonhos de Nicole, por exemplo, o de dirigir uma peça. Quando ela pergunta sobre a série que está prestes a protagonizar, Charlie diz que não faz diferença, afinal, ele não assiste TV, sendo que, poucos segundos antes, ele havia ligado o aparelho – ciúmes.
Nicole veio de uma família ligada à arte e, diferentemente do marido, nunca teve problemas financeiros. Ela parecia satisfeita e enturmada no teatro, porém, a verdade é que sempre se sentiu controlada por Charlie, que a colocava, sem notar, como uma coadjuvante. O protagonista não a via como um indivíduo, mas como uma parte de sua engrenagem, pelo menos é o que Nicole acredita. E se a série não é grande coisa, pelo menos é uma conquista pessoal. Ela não gosta de falar mal de Charlie, mas Nora consegue extrair exatamente o que quer escutar, o que a atriz guardou no peito durante muito tempo.
Embora o filme explore a dor de ambos os personagens, é nítido que, enquanto Nicole está onde sempre quis, se sente mais autônoma e feliz e vive em uma casa mais confortável, Charlie passa por um inferno, um período de descobertas dolorosas, perdas e cicatrizes incuráveis.
Dois momentos definem perfeitamente essa diferença. Quando Nicole deixa Henry no hotel em que Charlie está hospedado, ele pergunta sobre sua fantasia: “Station To Station?” Ela responde: “não, Let’s Dance.” Mas o que isso significa? Quem é fã de David Bowie, sabe que durante a gravação do primeiro álbum citado, lançado em 1976, o cantor estava completamente perdido, sob o efeito constante de cocaína; em contrapartida, o segundo álbum, de 1983, foi o momento mais comercial, alegre e descontraído de sua carreira.
Em outra cena, acompanhamos uma ligação telefônica através de planos médios de um e depois do outro, até que Baumbach utiliza um plano geral, mostrando a espelunca escura na qual Charlie estava hospedado e a festa luxuosa em que Nicole estava.
O protagonista gosta de seu primeiro advogado, Bert, mas percebe que precisa de alguém do mesmo nível de Nora, então contrata Jay. Nos corredores, os dois se cumprimentam como velhos amigos, já no tribunal, se escoram em retóricas apelativas, que expõem intimidades sobre o casal, que não fazem a menor diferença naquele julgamento, servindo apenas de humilhação pessoal.
Na cena mais famosa e impactante, Charlie chega a desejar a morte de Nicole, que mantém um tom similar. Os dois desabam, choram e se desculpam.
“Ela faz as pessoas se sentirem confortáveis, escuta a todos, sempre resolve os problemas familiares, sabe quando precisa estar ao meu lado e quando eu preciso de espaço, corta os nossos cabelos, dá os melhores presentes, é competitiva, é uma grande dançarina e me faz querer ser um. Ela é a minha atriz favorita…”
O texto de Charlie, o qual Nicole nunca leu, dizia basicamente isso e a inserção de imagens cotidianas apenas reafirmam o seu profundo amor pela esposa. O nível de detalhamento é tocante e a cena em que ele lê o texto dela basicamente define o filme: são pessoas que ainda se amam e que não precisavam passar por tudo aquilo. O desfecho, pelo menos, é otimista.
A direção de arte foca em detalhes, como retratos espalhados pela casa, potencializando a melancolia. A abundância de livros diz muito sobre o comportamento cerebral de Charlie e talvez seja uma autocrítica. A casa de Nicole em Los Angeles é enorme, convidativa, tem um jardim e está sempre iluminada; por outro lado, os ambientes habitados pelo protagonista são escuros ou impressionam pela desorganização dos objetos/móveis. Se ela se veste de David Bowie, ele usa uma fantasia de homem invisível – é como ele se sente.
A cor primordial aqui é o branco, cuja conotação varia. Na sala de Nora, as paredes brancas representam a segurança e a estabilidade que ela quer passar para os seus clientes, uma espécie de sedução. Ligado aos outros personagens, principalmente Charlie, a cor tem o sentido de vazio, de um esgotamento absoluto, do fim de uma vida colorida e feliz. A presença de tons pastéis também é importante para salientar essa tristeza. A diferença entre as salas dos advogados é fundamental para caracterizá-los. Se as de Ray e Nora são enormes, a de Bert é pequena e apertada.
A fotografia encontra um interessante contraste entre Nova Iorque – cinza, escura – e Los Angeles – ensolarada, cores quentes -, sendo, talvez, o principal ponto de empatia com Nicole. Charlie precisa da atmosfera mais intimista e melancólica de Nova Iorque.
Noah Baumbach nunca esteve tão inspirado. Ele sabe exatamente quando deve dar um ar quase confessional a uma sequência, utilizando close ups e abusa de barreiras físicas e simbólicas para expor o gradativo distanciamento entre os dois. Os personagens se movimentam freneticamente em algumas sequências, criando uma atmosfera tensa, seja na cena em que Charlie é intimado, seja na do grande embate – já citada -, na qual o diretor posiciona seus atores milimetricamente e depois os deixa circular pelo ambiente, usando close ups e planos médios, reforçados por uma montagem dinâmica.
Nos tribunais e nas reuniões, Baumbach, além de manter a distância entre o ex casal, ressalta a vergonha que ambos sentem pelo o que está sendo dito, através de ângulos laterais, nos quais vemos os rostos fixos e inexpressivos deles e, no fundo – dependendo de quem está no foco da câmera -, vemos apenas um esboço do outro, como se eles estivessem se apagando de suas respectivas vidas.
Apesar de ter ganho o Oscar, Laura Dern não o merecia. Sua interpretação não é ruim, apenas me parece bastante unidimensional. Não conseguimos criar nenhum tipo de empatia por Nora, apenas sentimos raiva da personagem – as roupas vulgares também ajudam – e, ainda que tente trazer o espectador para o seu lado com diálogos falsamente cordiais, ela é apenas um peão dentro da trama – fundamental por sinal.
Scarlett Johansson oferece uma performance rica. Ao mesmo tempo em que Nicole não quer ferir Charlie, essa é, às vezes, a única forma que ela tem de seguir em frente e isso a machuca profundamente. Vemos uma mulher que quer amadurecer, crescer e encontrar sua voz, mas também que duvida de suas próprias ações e que gostaria apenas que seu casamento tivesse sido perfeito.
Mais uma vez, o grande destaque do filme é Adam Driver, que impressiona pela humanidade que transmite ao longo de seu intenso arco. Sua felicidade e conforto perante sua vida são notáveis e sua primeira reação ao perceber um princípio de instabilidade é expressiva. Ele vai incrementando elementos à sua caracterização, passando pelo desespero, pela extrema dor e pela tentativa de se manter calmo. Sua interpretação é sutil a ponto de notarmos algo fortíssimo apenas com um olhar e sua versatilidade permite que ele chegue a extremos, como na cena em que briga com Nicole, a que canta em um restaurante e a que chora copiosamente ao ler o texto de sua amada.
“Marriage Story” é uma obra prima, um filme pesado, que impressiona pela honestidade e pela intimidade.
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