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“Ele era romântico demais em relação a Manhattan, como era com tudo mais”.

Isaac está saindo com Tracy, por quem, apesar de nutrir fortes sentimentos, mantém uma certa distância – emocional, não física. O protagonista é injusto, fica em um meio termo, não tira o esparadrapo de uma vez, nem se compromete. Ele pode até dizer, mas não acha aquilo ridículo, afinal, é ao seu lado que fica mais relaxado e feliz. Tracy está prestes a completar dezoito anos, o que, a princípio, parece um problema, no entanto, na medida em que conhecemos todos os personagens a fundo, percebemos que não há nada de errado ali, pelo contrário.

Ela é madura, tem bons insights acerca de relacionamentos e não exige nada além de reciprocidade. “Talvez as pessoas não tenham sido feitas para uma relação profunda. Talvez devamos ter uma série de relacionamentos de durações diferentes”.

Levando em conta seu histórico, Isaac não deveria reclamar ou projetar atalhos para “cair fora”, mas aproveitar o que poucos têm. Sua ex-esposa o trocou por uma mulher e está escrevendo um livro sobre o casamento, com direito a detalhes e intimidades difamatórias.

Yale, seu grande amigo, é casado há doze anos. Repentinamente, ele informa ao protagonista que conheceu alguém e que pensa no divórcio. Mary é uma jornalista cultural que detesta Ingmar Bergman, Walt Whitman e Gustav Mahler. Isso é o suficiente para entendermos que sua infelicidade pode ser atribuída somente a ela. O ar de superioridade em seu tom e as palavras rebuscadas que usa são marcas de uma figura intragável.

Por acaso, Isaac a encontra na inauguração de uma exposição e descobre que, por trás dessa máscara intransponível e excessivamente cerebral, existe uma mulher insegura e solitária.

“Você conhece vários gênios. Deveria conhecer pessoas burras de vez em quando. Aprenderia algo”. Eles combinam. O protagonista sabe desarmá-la com seu senso de humor e a aprecia por qualidades que costumam ser avistadas a longo prazo. Ele não se atreve a beijá-la, não por Tracy, mas por Yale, que, numa crise de consciência, se afasta e decide encerrar o romance para focar na esposa, no que é palpável e concreto.

É impossível todos saírem no lucro, a conta não bate. Em situações assim, não pensamos na matemática, apenas na hipotética felicidade. Egoísmo? Sim. Justo? Não me atrevo a dizer o que é certo e errado aqui. Esses personagens estão perdidos, fadados a idealizações passageiras, são incapazes de parar e contemplar a beleza a dois. Mary não quer ser uma destruidora de lares, porém detesta a ideia de ficar longe de Yale. Quando é libertada de tal amarra e encontra em Isaac um homem disposto a amá-la, volta ao que era destrutivo e angustiante.

O mesmo vale para Yale, que, após acertar os ponteiros do relógio, decidiu atirá-lo no chão, confundindo o melhor amigo, a quem havia entregado Mary de bandeja, e optando por algo que certamente acabaria em quatro semanas. Não podemos tirar Isaac da equação. Ele tinha Tracy, uma jovem madura, disposta a aprender e a se estabelecer ao seu lado. Sua surpresa ao escutar que Mary ainda amava Yale é um tanto incoerente, já que tudo é movido por aquilo que não se tem ou por algo que esteve em suas mãos e que só agora soa incrível.

Eu comecei a me perguntar se não estava diante de um grupo de malucos, até Yale dizer a verdade. “Você é tão arrogante. Somos pessoas! Somos apenas seres humanos! Você acha que é Deus?

A graça e o prazer em assistir esses personagens estão diretamente relacionados a beleza de Manhattan. As imagens que abrem e fecham o filme são lindíssimas, todavia, não de uma forma “tradicional”. Os prédios, os restaurantes, os bares de jazz, o Central Park… existe um mistério ali, as paisagens fogem da obviedade, mas são, inegavelmente, hipnotizantes.

Não queremos admitir, porém, no fundo, somos como Isaac, Mary e Yale. Não vou ser hipócrita a ponto de odiá-los por um impulso natural a uma espécie que se auto sabota.

“Pessoas que estão constantemente criando problemas neuróticos desnecessários, pois isso evita que enfrentem problemas indecifráveis e terríveis do universo”.

Em meio à solidão, o protagonista seleciona coisas que fazem a vida valer a pena. Ele cita Groucho Marx, Louis Armstrong, filmes suecos, “A Educação Sentimenal”, de Flaubert, Marlon Brando, Frank Sinatra, as peras e maçãs pintadas por Cezanne… e se lembra do rosto de Tracy. Isaac a encorajou a aceitar uma bolsa de estudos em Londres e agora se arrepende. Ele não tinha pensado em sua formação, mas numa maneira de terminar o relacionamento sem ter que magoá-la. Nada de táxi, é a corrida de sua vida, atrás de algo que tinha no início do filme. A viagem para Londres é uma grande besteira, um absurdo, deixou de fazer sentido.

Tracy não está na equação, é um sopro de esperança e delicadeza – talvez não seja “adulta” o suficiente. “Nem todos se corrompem. Você precisa acreditar nas pessoas”.

“Manhattan” é um dos mais belos filmes já fotografados em preto e branco. O uso constante de contraluz casa perfeitamente com a proposta romântica de Allen – destaque para o plano icônico no qual Isaac e Mary observam a ponte de Queensboro iluminada. A questão é: como romantizar uma história fadada à tragédia?

O humor percorre a narrativa inteira, sempre orgânico e certeiro. As tiradas geniais de Allen estão por aí, no entanto, a comicidade não se limita a elas. Há momentos que remetem ao cinema mudo, com gags simples e eficientes.

A Nova Iorque de Allen é naturalmente convidativa, porém, aqui, através das lentes de Gordon Willis, nunca esteve tão irresistível. Quem divide mais vezes a cama com o protagonista? Não é preciso muito para fomentar intimidade.

Esses elementos, aliados à trilha sonora de George Gershwin – citado pelo protagonista – transformam sequências, como, por exemplo, aquela em que Isaac e Tracy andam de charrete no Central Park em momentos mágicos, dignos da antiga Hollywood. Allen eleva sua cidade e traz uma atmosfera encantadora a um filme que poderia ser só “mais um drama”.

Diane Keaton, o subestimado Michael Murphy e Mariel Hemingway e o próprio Woody Allen estão excelentes.

“Manhattan” é, muito provavelmente, a principal obra prima de um gênio.

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