“Benoit era uma criança tão maravilhosa. Um querido! Era muito carinhoso e doce”. Após essa calorosa fala da mãe de Benoit, somos levados a uma cena em que ele espanca um carteiro até a morte. Claro, há um motivo: é a partir das correspondências que o protagonista localiza senhores de idade, alvos que costumam ser financeiramente afortunados. O mesmo sujeito que afirma: “Realmente é bem dotado”, após checar as partes íntimas de um homem negro que matou, faz uma longa análise sobre os problemas estruturais e arquitetônicos de Paris: “Como é possível fazer projetos de habitação social ignorando completamente a estética? Eu não posso aceitar isso, me desculpem”. Com a mesma minúcia, Benoit nos explica o que fazer para o cadáver não boiar na água. O disparo da arma de brinquedo da criança é interrompido pelos disparos do protagonista, num belo exemplo de raccord – o contraste entre a inocência e violência.
“Man Bites Dog” é uma espécie de irmão mais velho de “Funny Games”, de Michael Haneke. Assim como o mestre austríaco, Benôit Poelvoorde, Rémy Belvaux e André Bonzel, os três cineastas estreantes, que também estrelam o filme, propõem uma crítica à espetacularização da violência por parte do audiovisual norte americano. Aqui, a grande sacada é optar pela estrutura de “Mockumentary”, ou seja, um documentário falso – na essência, eles já admitem a farsa e o caráter indagador do projeto. Na trama, uma equipe de filmagem decide acompanhar Ben, que aceita, de bom grado, a realização de um filme sobre seus feitos gloriosos. A fluidez conferida pela estrutura documental e as quebras de tom, confeccionadas por uma montagem cujo timing impressiona, colocam o espectador contra a parede, questionando a própria crueldade enquanto gargalha. Esse talvez seja o único filme em que eu me pergunto se deveria estar tendo uma reação específica, o que ressalta a qualidade do trabalho dos diretores, que, a todo instante, provam que os seres humanos são obcecados por violência (se for gratuita então, aí é o manjar dos deuses).
Quando me refiro às constantes quebras de tom, quero dizer que, entre o show de brutalidade e sadismo, conhecemos o protagonista e somos introduzidos a uma série de interações informais e divertidas. Já que citei o parentesco desta obra com “Funny Games”, nada mais justo do que colocar Ben na árvore genealógica de Alex DeLarge, de “Laranja Mecânica”. Os familiares de Ben são pessoas adoráveis – seu avô conta uma história engraçadíssima sobre um par de calcinhas de Brigitte Bardot – e suas amigas o amam genuinamente. Ele é culto; está sempre bem vestido, escreve poemas, dá uma aula sobre o acasalamento de aves, frequenta exposições e tocava piano no conservatório de música. Em determinado momento, o protagonista nos chama de “cinéfilos”, como se confirmasse nossa condição de cúmplices e de apreciadores do horror. Os cineastas brincam com a linguagem cinematográfica e exploram o subgênero ao máximo, como, por exemplo, na sequência em que Ben, a fim de localizar o espectador, pede para o cinegrafista dar um zoom no homem que está prestes a morrer. As cenas mais chocantes envolvem estupro, uma família sendo brutalmente assassinada (com direito ao sufocamento de uma criança) e um susto que acarreta o ataque cardíaco de uma idosa. Os cortes secos nos transportam da descontração absoluta a esse nível de crueldade, provocando um efeito difícil de se explicar.
A fotografia em preto e branco atribui uma notável crueza a um filme que quer despertar desconforto. Benôit Poelvoorde, que dá vida ao protagonista, é o principal responsável pelo êxito do projeto. Sem seu carisma, humor peculiar, afeto perante os entes queridos, imprevisibilidade e eloquência, estaríamos diante de algo meramente sádico. Criamos uma simpatia pelo marginal, rimos com ele nos momentos certos e, por incrível que pareça, torcemos para que ele não seja pego. No mundo da banalidade, tudo é entretenimento; tudo é divertido; tudo é cinema; tudo é notícia.
“Man Bites Dog” é uma das sátiras mais ácidas e deliciosamente perturbadoras já realizadas. Hollywood jamais seria capaz de produzir algo desse tipo.