Robert está sempre acompanhado, sua casa é praticamente um bordel e, quando não há ninguém lá, ele vai a algum lugar para se embriagar. Dito isso, o protagonista é um homem solitário que não reclama de sua condição, pelo contrário, assume que não gosta muito das pessoas em geral. Robert tem jeito com as mulheres, mas não com relacionamentos.
Elegante, ele enche sua luxuosa e caótica residência em Los Angeles de prostitutas e faz perguntas pessoais. Elas entendem e respeitam Robert, que não quer compromisso, sentimentos ou apego – nesse sentido, o dinheiro é um tranquilizador. “Adoro seu jeito de escrever sobre a solidão. Faz parecer excitante e romântico”, diz alguém ao protagonista, que adora preencher espaços físicos, não da sua alma.
Suas aventuras noturnas, além de conversarem com sua natureza, são base de estudo para os seus livros, voltados às suas experiências. Robert considera os seres humanos carentes, o que para um homem que não liga nem para si mesmo, é demais. A cantora da boate parecia fascinante, não à toa, no diálogo entre os dois, Cassavetes fecha o quadro no protagonista e opta por um plano médio em Susan – não estão em sintonia. Após insistir e passar vergonha bêbado, Robert, de certa forma, a conquista. No entanto, quando ela bate em sua porta na manhã seguinte, ele é “carinhosamente direto”.
Em um dia normal, com suas acompanhantes de luxo, o protagonista é surpreendido pela presença de sua ex-mulher e de seu filho, o qual nunca havia visto. Agnes tem um compromisso e pede ao escritor que cuide do garoto por pouco tempo. Não demora muito para Albie se horrorizar com o ambiente e sair correndo. “Quer uma Coca-Cola? Uma cerveja?”
Robert não leva jeito com crianças e não pretende assumir compromissos paternos, todavia, à sua maneira peculiar, demonstra afeto pelo filho. As coisas não terminam bem, esse não é um filme de redenção, ainda assim, Cassavetes, com seu olhar carinhoso para os desajustados, faz com que o espectador se preocupe com o protagonista.
Na outra ponta temos Sarah, irmã de Robert, que acabou de se divorciar do marido e viu sua filha escolher o pai. O cineasta dá atenção ao silêncio infantil. Parado na porta do escritor, Albie esconde um potente e contido medo.
Na primeira cena no tribunal, Debbie fica ao lado da mãe e Cassavetes, ao variar o personagem em foco, transmite a aflição da garota. Na segunda cena, ela fica na cabeceira, ou seja, tomou uma decisão. Sarah não queria a separação, enxerga no amor um riacho que não cessa. Sua verdade distorcida e pessoal advém de uma mente em frangalhos, que já passou por alguns manicômios.
Ela não liga para sexo, apenas para o amor “infinito” que sente por sua família. Obsessiva, Sarah não para de pensar em Debbie e Jack por um minuto. Sua busca é pela cura de si e a personagem tenta, pelo menos, parecer mais sã. No aeroporto, ela é cercada por grades e pede ajuda, com suas trezentas bagagens, a um francês que não fala inglês. Sarah está presa a sua idealização e não entende o que os outros dizem, é incapaz de seguir adiante. De uma pequena cabine telefônica, ela liga para Jack, que está em um espaço aberto, jogando tênis com Debbie – o contraste é suficientemente revelador.
A narrativa segue os passos desajeitados dos irmãos, criando, dessa forma, uma profunda conexão entre os dois, lados opostos da mesma moeda. Igualmente desajustados, Sarah e Robert não poderiam ser mais diferentes; ele rejeita qualquer laço real, vive perambulando, bebendo e negando responsabilidades, enquanto ela rejeita a possibilidade de respeitar a decisão daquele que julga amar e exala carência.
Perdida, Sarah, sem avisar, recorre ao protagonista.
Os olhos de Robert brilham e o forte abraço marca um intenso amor. Um enxerga o vazio do outro e, em suas melhores versões, tentam se ajudar. A partir da absoluta falta de noção dos personagens, Cassavetes constrói um dos retratos mais honestos de uma relação entre irmãos. O cineasta utiliza a peculiaridade dos dois para potencializar seus sentimentos, intenções e apresentar um lado, até então, desconhecido do escritor.
Como Roger Ebert escreveu em sua crítica sobre “Love Streams”, esse é o tipo de filme em que uma mulher traz para casa dois cavalos, uma cabra, um pato, algumas galinhas, um cachorro e um papagaio, e você não tem a sensação de que está indo atrás de risadas baratas. Cassavetes se enxergava em seus personagens, conhecia suas aflições e deixava o espectador desarmado, aberto a aceitar a loucura.
Em determinado momento, Sarah fica inconsciente. Se antes Robert preferia que as pessoas achassem que ele estivesse morto, agora, grita: “Quem sou eu???” O riacho que não cessa estava ali, é o único existente.
Conhecido por sua abordagem crua e direta, Cassavetes surpreende, investindo em sequências subjetivas e oníricas. Em uma delas, Sarah se humilha perante a filha e Jack, tentando fazê-los rir a qualquer custo. Gena Rowlands improvisou na cena inteira, o que torna o desconforto maior – ela realmente queria ser engraçada. O outro sonho é lindíssimo, mistura balé, ópera, incerteza, disputa e reconciliação.
A tempestade no desfecho é catártica, simboliza a considerável diferença entre os dois e o indestrutível amor que nutrem.
Ninguém melhor que o próprio John Cassavetes para encarnar um personagem tão caótico e disfuncional quanto Robert. Suas opções enquanto diretor eram vistas também em suas performances, exaltadas pela total entrega e pelo “descompromisso” – no melhor sentido possível. Ele não tinha medo de passar do ponto, não tinha medo de ser o protagonista.
Gena Rowlands, esposa e musa de Cassavetes, que já havia chocado o mundo com sua interpretação em “A Woman Under The Influence”, tida por muitos como a melhor de todos os tempos, vive Sarah com extrema naturalidade. Sua facilidade em demonstrar insegurança e uma desesperadora vontade de ser amada é descomunal.
“Love Streams” é uma obra prima sobre seres que dividem a mesma escuridão em diferentes pontos da equação.
John Cassavetes deixou o melhor para o final…