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Os planos fechados do casal abraçado não escondem a verdade. Louis Malle, então, abre o quadro, expondo o vazio que já víamos naqueles olhos. “Pobre Alain. Você parece estar mal”, diz Lydia, sua amante. Internado há quatro meses numa clínica de reabilitação, em Versalhes, Alain admite não ter vontade de encarar a vida novamente, optando, mesmo curado do alcoolismo, pelo esconderijo. Em “Le Feu follet”, Louis Malle, conhecido por abordar temas complexos e delicados, nos coloca em contato com a morte da alma de um homem que perdeu as esperanças e que, antes de dormir, anuncia para si que irá se matar. Em seu quarto, repleto de fotos, livros e recortes trágicos de jornais, Alain fala consigo e anda inquietamente. O doutor pergunta se o protagonista ainda tem sensações de angústia. “Não são sensações de angústia, doutor. É uma única angústia, perpétua”.

Dorothy, sua esposa, vive em Nova Iorque e se limita a pagar as despesas da clínica. Eles chegaram a falar sobre o divórcio, mas deixaram para lá, assumindo vidas paralelas. Em seu último dia na terra, Alain decide ir a Paris para visitar os amigos do passado. Duborg, antigo parceiro de vício de Alain, se casou e tem duas filhas. O encontro entre os dois é simbólico na medida em que captamos as diferenças filosóficas. Duborg pode até ter perdido as esperanças, mas, agora, está repleto de convicções. Sua adolescência se esvaiu, dando espaço à maturidade. Alain se recusa a envelhecer sem ter vivido a promessa de uma juventude pura e apaixonante. Seu semblante muda ao ver um grupo de garotas caminhando. “Eu nunca as tive. Eu não as tenho agora”. Alain não suporta a “mediocridade” da trajetória humana; viveu esperando por relações e pessoas que nunca apareceram; relações e pessoas que não existem…

Qual o valor da vida quando se está diante do abismo? A resignação do protagonista pode soar exagerada para alguns espectadores, mas é real e está em todos os cantos, como um fantasma que perambula pelas ruas movimentadas. Ao longo do percurso, notamos que Alain conhece muitas pessoas que nutrem admiração por ele, o que, em seu turvo pensamento, apenas justifica sua depressão. Aquelas pessoas não vão tirá-lo do buraco e curar sua doença, mas observar o estado humilhante de um homem que não conquistou nada. “Cinco minutos perto dela e me sinto como um inseto”. É impossível decifrá-lo inteiramente; todavia, é igualmente impossível não compreender o que há por trás do ato constante de se menosprezar.

Os cortes em sequência, que causam desorientação, na cena do jantar, enquanto Alain explica o tamanho de sua desilusão, dão a dimensão do tormento de uma alma que está à procura de outro plano. Encontrar os amigos significa entrar em contato com a própria falta de ambição e realizações nos ramos vocacional, amoroso e financeiro. Encontrá-los é, também, a confirmação de que os outros se integraram à sociedade. Um dos convidados do jantar é um sujeito insuportavelmente pretensioso. “Ele é irritante, mas é alguém”, explica Cyrille, no que pode ser descrito como uma “concessão burguesa”. Na festa de máscaras, Alain veio desnudo. No famoso Café de Flore, ele observa a vida alheia. Sua expressão é idêntica a de um alienígena que acabou de aterrissar num planeta estranho. A fim de aliviar a profunda desconexão e o desespero, Alain volta a beber. Ser digno de pena é quase como inexistir; você é o coitado, o animal indefeso que percebe os gestos de piedade. “Eu gostaria de ter cativado as pessoas; retê-las; mantê-las próximas. Para que nada mais se movesse ao meu redor. Mas tudo sempre deu errado”. “Queria tanto ter sido amado…”

As mulheres que nos matam inconscientemente; as convenções que nos adestram; os empregos robotizados; e o maior inimigo do homem: ele mesmo. O desfecho é precisamente seco, marcado pelo ritual, um plano-detalhe, um fade e um freeze frame acompanhando de legendas. A fotografia em preto e branco e a trilha sonora, à base das Gnossiennes e Gymnopedies de Erik Satie, embalam a narrativa, servindo ao estudo da psique e à construção de uma beleza melancólica. Maurice Ronet oferece a melhor performance de sua carreira. Palavras não fazem jus ao peso de seu rosto.

“Le Feu follet” é uma das maiores obras primas já produzidas na França.

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