Ken Loach é um dos grandes humanistas da sétima arte. A partir de premissas simples e da marcação do cotidiano, ele aborda temas sensíveis e relevantes usando o palco do cinema para dar voz à classe trabalhadora inglesa. Em “Kes”, 1969, Loach observa Billy, um jovem de South Yorkshire preso às correntes da padronização e dos maus tratos. Em casa, Billy é agredido por Jud, seu irmão, e se depara com a indiferença da mãe, que fica impotente diante das ações do primogênito.
No seio familiar, o protagonista tem exemplos daquilo que não quer ser: pessoas que foram corrompidas por um instinto de sobrevivência. Jud detesta o ofício de minerador e a mãe, em busca de estabilidade, pensa na possibilidade de se casar. Em meio ao turbilhão de contas e à necessidade de ganhar dinheiro, essas pessoas assumem um egoísmo que corrói suas peles e almas. É a carniça de quem se mostra alheio às dores e fragilidades alheias; é a denúncia a um sistema que deforma os seres humanos.
Na escola, os professores utilizam a autoridade que lhes foi conferida para amedrontar os alunos, provando que, por vezes, os tiranos mais perigosos estão nas salas de aula. Existe um prazer sádico em punir e em humilhar que é incompatível com a função de um educador. A escola deixa de ser um ambiente de aprendizado, tornando-se um campo minado composto por adultos frustrados e crianças implicantes. Dessa forma, Loach deixa claro que o protagonista é ensinado, desde cedo, a abraçar a resignação. Seus pilares foram adulterados. Sem expectativa, os jovens apenas esperam o momento em que assumirão os postos de seus pais. Loach, com seu estilo naturalista, permite que o espectador acompanhe tudo sem maiores “interferências”. Ele acredita na força do cotidiano e das interações, mas também expõe a desesperança de Billy a partir de enquadramentos meticulosos. Vê-lo escondido na casa de máquinas, com o rosto sombreado e a camisa rasgada, desperta uma melancolia maior do que muitos diálogos. O mesmo vale para o plano em que Billy, sozinho, aguarda por uma entrevista de emprego numa sala de paredes descascadas cuja única decoração é um quadro com a imagem de uma mulher deprimida. Os fades constantes e os tons frios que cobrem a cidade são essenciais na construção dessa atmosfera taciturna.
Billy começa a cuidar de um falcão. Ele lê um livro sobre a ave e decide chamá-la de Kes. Perdido em caminhadas solitárias e obrigações vazias, o protagonista encontra uma raridade: a paixão. O único momento em que os alunos parecem interessados no que está sendo dito, é quando Billy é convidado a falar sobre o falcão na frente da turma – ali, diferentemente das aulas, há paixão, não imposição. Os gritos dos tiranos, as brigas com colegas e as discussões familiares se esvaem quando o falcão, em silêncio, voa solenemente. Loach faz da natureza um espaço de paz e harmonia, enfatizando o lirismo do verde das folhas e gramas. Nessas sequências, o diretor abre o quadro e opta por uma trilha sonora suave, ressaltando a liberdade experimentada por Billy ao fazer algo que ama. “Sabe, senhor? Eu acho que ele me faz um favor ao me deixar vê-lo voar”, diz o protagonista para o único professor que demonstra o mínimo de empatia. Assim como o falcão, Billy não é domesticável. A sensação de desencaixe, neste caso, é um sinal de que a espécie humana ainda não sucumbiu totalmente ao autoritarismo de um sistema que define a trajetória do proletariado. Ao focar na criança, Loach confere contornos mais desalentadores à obra. Aqui, o rebelde é um garoto inocente, não alguém engajado e politizado – afinal, estes inexistem. Não se preocupe, a sociedade cortará suas asas. Eu não tenho dúvidas de que Loach estava falando de um lugar e de um período específicos, todavia, sua mensagem, infelizmente, ressoa nos tempos atuais.
Em seu primeiro e único papel relevante, David Bradley oferece uma performance formidável, transmitindo, ao mesmo tempo, a ingenuidade de uma criança e a melancolia de um jovem que reconhece as limitações impostas à sua existência. “Kes” foi o primeiro petardo de um mestre britânico.



