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A carreira de Elaine May como diretora é uma das mais curiosas de Hollywood. “A New Leaf”, “The Heartbreak Kid” e “Mickey and Nicky” foram aclamados e se tornaram marcos da Nova Hollywood.

Em 1987, ela resolveu retornar para trás das câmeras, dessa vez com um orçamento bombástico. Todavia, “Ishtar” acabou sendo um fracasso retumbante e foi, inclusive, descrito por muitos críticos como “o pior filme já feito”. Resultado: May e parte do elenco foram afastados dos grandes palcos.

Não estamos falando de “2001: Uma Odisseia No Espaço”, que, de fato, precisava de tempo para ser inteiramente apreciado, afinal, estava muito à frente de tudo que havia sido realizado até então. A má fama, eventualmente, criou uma certa mística em torno de “Ishtar” que, ao longo dos anos, ganhou uma legião de fãs. Na internet, você encontrará diversos textos que explicam porque “Ishtar” é um grande filme e não uma bomba. O que aconteceu? As pessoas mudaram tanto assim? Esse é um fenômeno realmente intrigante.

Na trama, acompanhamos Lyle Rogers e Chuck Clarke, dois dos piores compositores já postos em tela. Ao se depararem com pôsteres de Simon & Garfunkel, um deles não titubeia:

“Dangerous Business é tão boa quanto Bridge Over Troubled Water”. Eles não são arrogantes, nem pretensiosos, simplesmente não tem noção do ridículo.

Perto de Rogers e Clarke, qualquer banda é razoável, o que é pontuado pela montagem através de cortes secos. O mesmo artifício vale para o “processo criativo” da dupla, que atira palavras aleatórias, não conhece o significado de ritmo e mal sabe tocar um instrumento.

Eles são tão idiotas e ingênuos, que se tornam adoráveis. May aposta no constrangimento para nos fazer rir e acerta na caracterização dos personagens. Lyle é incapaz de perceber o descontentamento de sua esposa, com quem está casado desde os dezessete anos. Quando ela pede o divórcio, além de se comportar como uma criança que se perdeu dos pais no shopping, ele exibe uma habilidade social que rivaliza com a qualidade de suas canções. Lyle parece desconhecer o comportamento humano normal e não consegue dizer algo minimamente compreensível perto de uma mulher.

Em contrapartida, Chuck se considera um sedutor de primeira linha, não à toa, carrega o apelido de “Falcão”. Isso é uma fachada, notável também em seu figurino, que emula o que seria um artista bem-sucedido naquela época.

Chuck é tão inseguro e frágil quanto Lyle, que tenta consolá-lo num momento delicado. “Ei, é preciso ter coragem para não ter nada na sua idade”.

O agente da dupla percebe o óbvio e decide mandá-los para bem longe, em uma turnê pelo Marrocos. Antes, eles param num país fictício chamado Ishtar, dominado por um líder opressivo. Por acaso, Lyle se envolve com Shirra, uma guerrilheira oposicionista, e Chuck, com Jim Harrison, um agente da CIA, aliado do governo local.

O mapa de Ishtar interessa a todos, é o objeto que mudará a situação do país ou o enterrará de vez na miséria, e deve ser carregado pelos “mensageiros de Deus”.

Os cantores não percebem que estão sendo usados, muito menos que suas vidas correm perigo, se sentem importantes e satisfeitos – ninguém nunca lhes confiou algo dessa magnitude.

Em um plano conjunto, May basicamente define a situação: as camas separadas, Lyle do lado esquerdo, Chuck do lado direito. Eles tentam esconder suas identidades secretas, mas até um deficiente visual é capaz de notar o ânimo no rosto de um idiota.

Basta dizer que a dupla fica perdida em um deserto, com um camelo cego e vira alvo dos dois grupos, que não têm dúvidas de que foram traídos. A situação já é confusa e, para piorar, eles não fazem ideia do que está acontecendo, apenas que Emir – o líder de Ishtar – é malvado e que Shirra é belíssima. Interpretada por Isabelle Adjani, ela encanta os músicos com sua aparência e jeito carinhoso.

O roteiro de May é certeiro ao apontar para o imperialismo americano e as alianças condenáveis estabelecidas por seus governos. O plano geral de Lyle e Chuck, em meio às dunas, tentando domar um camelo cego, é a prova de que a boa comédia não depende de exibicionismos. Shirra se arrepende de ter colocado os dois em maus lençóis e surge para defendê-los dos ataques da CIA. “Isso não é fantástico? Nunca aconteceu nada com a gente”.

Sim, eles estão mais armados que dois helicópteros bélicos e isso só funciona graças ao roteiro, que preparou minuciosamente o terreno para tal loucura. “Ishtar” também é uma exaltação às verdadeiras amizades, caso contrário, não daríamos a mínima importância para esses personagens. A empatia e o afeto que nutrem um pelo outro é tocante.

E a turnê? May usa o poder americano para premiar a dupla com um espetáculo mundialmente promovido. Eles melhoram enquanto músicos? Aí seria demais.

Não é fácil dar vida a idiotas; muito menos a idiotas tão cativantes e engraçados. Dustin Hoffman e Warren Beatty alcançam essa proeza, equilibrando perfeitamente humanidade e imbecilidade – suas vozes já os colocam na posição de pobres coitados.

Eu poderia citar diversas cenas marcantes, mas fico com aquela em que Chuck precisa se passar por um leiloeiro árabe.

“Ishtar” merece uma chance. Vejam sem preconceito. Poucas comédias me fizeram rir tanto recentemente.

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