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Barnes e Paxton são missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons). Sempre que me deparo com jovens que batem à porta das pessoas, na intenção de convertê-las a alguma religião, questiono a validade de suas intenções. O que aconteceu para que elas prestassem este papel? Uma questão familiar? Um trauma mal resolvido? Não consigo acreditar que tenha a ver com uma adoração repentina por alguma figura sagrada ou palavra divina. O dia de pregações e leituras se encaminhava para um desfecho comum. A torta de blueberry, a tímida “esposa” e a simpatia, a princípio, são bons indícios. Mr. Reed fala sobre o tema com propriedade e demonstra interesse nos mórmons. Aos poucos, seu jeito ganha contornos sinistros. Ele faz perguntas incômodas, mas mantém a expressão de bom moço, tirando as missionárias da zona de conforto.

A sala é meticulosamente iluminada para atrair e acolher visitas. Quando “falta” luz, o protagonista deixa uma de suas garras à mostra. A tal esposa não aparece, a torta nunca fica pronta e a porta, controlada por um temporizador, é impossível de se abrir. Reed sabe que a igreja não as convocou, pois não há sinal para ligações na residência. Lá fora, a chuva e a neve se intensificam, o que é ressaltado a fim de intensificar a sensação de aprisionamento. O plano em que vemos as duas de costas, de frente para Reed, sintetiza a obra: são peões de uma brincadeira doentia. Mas, afinal, qual a intenção do anfitrião? Se elas continuarem com a pose missionária, ele continuará sendo o homem que aguarda a esposa e a torta no forno. O que “Monopoly” e a Bíblia têm em comum? Ambos, em suas respectivas categorias, ocupam o primeiro lugar na lista de popularidade e, tirando raras exceções, não são jogados/lidos até o fim.

Poucos sabem, mas “Monopoly” é uma iteração de um outro jogo, assim como “Get Free”, de Lana Del Rey, é de “Creep”, do Radiohead, que, por sua vez, é uma iteração de “The Air That I Can Breathe”, da banda The Hollies. A primeira religião monoteísta foi o judaísmo, que, entre as três principais, é, de longe, a menos popular. Se todos esses Livros contam diferentes versões da mesma história, por que a “iteração” é mais reconhecida que o original? O que diferencia a indústria da música e a dos jogos de tabuleiro das “corporações” religiosas, que, através de missionárias e de outras ações, tentam se colocar como a “melhor”. Se os textos sagrados são iterações, por que são sagrados? Se a “história de Jesus” já era contada na mitologia antiga, com outros personagens, por que a Igreja é a casa de Deus?

Você pode escolher uma iteração, melhor dizendo, uma religião e praticá-la ou admitir que existe somente aquilo que vemos na Terra. “Tão vazio e capitalista quanto Monopoly”. Eu não posso negar, a retórica de Reed é poderosa, convidativa e dotada de um embasamento difícil de se contrapor. Dito isso, não seriam as religiões, mesmo com suas falhas, templos de acolhimento e empatia? Talvez não seja sobre o divino, mas sobre um sentimento que transcende a razão; sobre gostar do que ouve e de frequentar missas. Ao compararmos Reed e Barnes, fica nítido quem está de qual lado. Ela é insegura e amorosa; ele é rancoroso e cerebral. Disposto a inserir o espectador na discussão de “crença e descrença”, “Heretic”, dirigido por Scott Beck e Bryan Woods, é também fantástico em sua condução. O desconforto aumenta na medida em que os planos-detalhe geram tensão e a câmera é delicadamente movimentada. Os close-ups ressaltam o embate, o temor e identificam a malícia de Reed. A direção de arte e a fotografia conferem uma atmosfera opressiva crescente, desconstruindo a imagem projetada pelo anfitrião. Na trama, após serem introduzidas a real face do protagonista, Barnes e Paxton são obrigadas a passar por uma espécie de labirinto, onde Reed as introduz à ideologia da descrença. O roteiro nem sempre acerta – a inclusão do personagem interpretado por Topher Grace, por exemplo, acaba sendo uma abstração. No centro da narrativa, Hugh Grant oferece, muito provavelmente, a melhor performance do ano passado. O veterano se diverte como nunca, dando vida a um antagonista carismático e assombroso, combinando seu peculiar humor britânico com toques sinistros.

Por mais tropeços que dê na sua metade final, “Heretic” não deixa a peteca cair e crava o seu título entre as principais obras de horror desta década. 

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