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“Heaven’s Gate” tem início em Harvard, na formatura da turma de 1870. James é o galã, sabe disso e não faz esforço para arrancar suspiros apaixonados da garota que ama. Billy, o orador da classe, é um brincalhão que, até nos momentos mais sérios, faz questão de descontrair o clima. A arquitetura do auditório é exuberante e os detalhes em dourado ratificam a reputação dos envolvidos na cerimônia.

A festa ocorre ao ar livre e Cimino já apresenta seu cartão de visitas numa sequência de dança grandiosa, na qual os vestidos das moças combinam com os ternos dos rapazes, os movimentos se mantêm em sincronia com a música e sua câmera exala elegância.

Vinte anos se passam e James, que agora é xerife, está a caminho de Wyoming, onde se deu início a uma onda de crimes e assassinatos. Os imigrantes chegam em caravanas e a poeira ressalta a condição deplorável daquelas pessoas. Em contrapartida, as lindas paisagens, marcadas por árvores, campos e rios irretocáveis, são a esperança dos necessitados – o céu na terra. Passando fome e tendo que sustentar famílias inteiras, os homens roubam animais e acabam pagando por isso.

Nathan é introduzido através de sua sombra num lençol, responsável por torná-lo, de imediato, numa figura ameaçadora e fria. O plano em que o vemos pelo buraco do tiro, indo embora, é espetacular: Cimino usa a fresta gerada por um assassino para defini-lo. “Voltem para o lugar de onde vieram!”

O protagonista abandonou a Associação dos Criadores de Gado, pois, diferentemente dos antigos colegas, sua condição financeira não apagou sua empatia. O caos urbano é contraposto pela mansão da Associação, que se reúne a fim de exterminar os imigrantes, considerados anarquistas e bandidos. Billy está ali, todavia, se espanta com a desumanidade de seus “semelhantes”, que preparam uma lista com centenas de alvos. Além da própria força, Frank, o líder, contrata homens de diversas partes do país para realizarem o serviço.

Quando James aparece para entender o que está acontecendo, Billy fica atrás do amigo. Por mais que ele sinta nojo do que é discutido naquela sala, nem pensa em contraria-los, a não ser pelo seu habitual sarcasmo. “Eu sou uma vítima da minha classe, James”. Os imigrantes, em sua maioria, são trabalhadores honestos, seres que lutam por dignidade e por um pouco de paz. Sim, existem os ladrões, no entanto, ainda assim, estes não roubam por prazer, mas pelo instinto humano mais básico: sobrevivência.

A Associação não quer limpar a sujeira, quer eliminar os pobres e os “impuros”. Suas ações são puramente de ódio e preconceito, impressionando pela crueldade. Se a mansão chama a atenção pelo luxo, pelas vestimentas dos “cavalheiros” e pelo comportamento irrepreensível, as locações dos imigrantes prezam pela precariedade. A escuridão potencializa a condição de esconderijo, sendo as velas e os feixes que invadem as frestas das janelas os únicos pontos de luz. Isso é evidente, por exemplo, no bar em que acontecem as rinhas de galo – o que, por si, já é algo proibido -, organizadas por John, amigo de James e na residência das prostitutas. “Está perigoso ser pobre nesse país”.

Até então, o protagonista tinha sido apresentado como um homem correto, porém solitário e com tendência ao alcoolismo – o que não é exatamente uma raridade naquele local. De repente, ele bate na porta de Ella, uma prostituta, e o filme ganha contornos ainda mais interessantes. James luta pela justiça de um povo oprimido e pelo amor de sua vida. Nesse momento, fica evidente que Cimino era, na verdade, um pintor. Os planos nos quais o casal passeia rente ao rio e depois se banha são inacreditáveis. A paisagem e a trilha sonora conduzem o romance, que tem um terceiro elemento.

Nathan, o assassino que havia sido introduzido por sua sombra, também ama Ella. A fumaça era a extensão de sua perversidade, todavia, ao nos aproximarmos do personagem, percebemos que, apesar de suas tendências violentas e de ter sido contratado pelas Associação, ele não compactua com a barbárie e é extremamente sensível com a amada, inclusive, não julga o seu ofício. Ao ler o nome dela na famosa lista, Nathan muda de lado.

O baile é a união de um povo renegado e maltratado que ainda encontra motivos para festejar. Cimino sabe a hora de nos colocar no meio dos personagens, como se estivéssemos dançando, e quando deve abrir o quadro, reforçando a amizade através do estreito espaço pelo qual se deslocam. O vestido vermelho de Ella não está ligado ao desejo carnal de seus clientes, mas ao seu espírito alegre e ao amor que sente por James.

A lei é o trunfo dos mais fortes, entretanto, a legalidade, aqui, é uma farsa; uma desculpa para validar a selvageria. Eu não vejo anarquistas naquele baile, mas vejo, com certa clareza, um bando de autoritários bem arrumados.

Os imigrantes, então, em vez de se esconderem e apontarem o dedo para os “criminosos”, decidem lutar por independência. A abordagem de Cimino é realista e corajosa; a violência é crua e até as mulheres protagonizam momentos bem viscerais. A poeira é o símbolo do filme; é ela que cobre o paraíso e desperta a desesperança generalizada. Entre os seus colegas, Billy é engolido pela poeira, desaparecendo – sua verdade e seus ideais se perderam em meio a pensamentos tão rasos e destrutivos.

A poeira também acaba sendo o calcanhar de Aquiles de Cimino, que, ao combinar tal elemento com cortes constantes, torna a ação um tanto confusa. Não sabemos exatamente quem dispara, quem morre, nem o que está acontecendo. Os planos gerais “consertam” esse erro, devastando o espectador, que se vê diante de uma terra banhada a sangue, erguida pelo preconceito, pelo ódio e pelo poder dos mais ricos. Eles conseguiram, o paraíso, por mais belo que seja, virou o inferno.

O elenco é abundante em talento. Kris Kristofferson, Sam Waterston, Brad Dourif, Isabelle Huppert, Joseph Cotten e Jeff Bridges estão excelentes, no entanto, Christopher Walken e John Hurt são os principais destaques.

“Heaven’s Gate” foi um fracasso de público e crítica, decretando o fim do sonho americano e da United Artists, estúdio que garantia a autonomia dos cineastas da Nova Hollywood. A carreira de Michael Cimino desandou e ele só realizou quatro filmes após este. Nos últimos anos, “Heaven’s Gate” tem sido revisitado e alcançou o justo status de clássico subestimado.

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