Antes de conquistar o mundo com a trilogia “Senhor dos Anéis”, Peter Jackson dirigiu, em 1994, o excelente “Heavenly Creatures”, um filme que sintetiza sua imaginação visual. Tudo começa numa escola feminina, onde Pauline Parker demonstra ser uma jovem introvertida e solitária.
Os uniformes marcam a repressão e a rigidez de professoras que usam a autoridade a seu favor. As coisas mudam quando Juliet Hulme, uma garota provocadora e carismática, entra na turma de Pauline. Juntas, as duas idealizam universos particulares, fugindo da pacatez cotidiana e das regras impostas pela sociedade.
Em Juliet, Pauline enxerga uma liberdade desconhecida, exposta por Jackson em movimentos de câmera e planos abertos nos quais as vemos em meio à natureza ensolarada, com roupas leves. A trilha sonora evoca uma atmosfera lúdica, como se estivéssemos assistindo a um jogo controlado por jovens que desconhecem o impossível. Ao contemplar a imaginação das personagens, Jackson adota uma abordagem estética de conto, com luzes que brilham intensamente e sequências envolvendo jardins de cores diversas, unicórnios e borboletas. Aquela é a realidade das novas amigas e é exatamente essa a virada de chave na narrativa. O laço ganha fortes contornos de obsessão: “Seria ótimo se eu também pegasse tuberculose”, diz Pauline, deprimida por não poder ver Juliet. Quando não estão juntas, nada faz sentido; seus familiares falam em idiomas desconhecidos, sendo incapazes de despertar alento.
Em um momento de “fraqueza”, Pauline se interessa por John, com se relaciona sexualmente pela primeira vez. A potência dos cortes e o design de som ressaltam a sensação de culpa da protagonista, que, logo depois, vai ao encontro da fiel companheira. Heavenly Creatures é, acima de tudo, um filme sobre homossexualidade em tempos de preconceito. Sem entender a natureza dos próprios sentimentos e sem o apoio de quem as cerca, as garotas se isolam numa realidade paralela. A estilização de Jackson conversa com tal ideia, captando julgamentos e emoções de uma forma singular e propositalmente exagerada. Na sequência em que Henry, pai de Juliet, conversa com os pais de Pauline sobre uma estranha intimidade entre as duas, ouvimos um barulho de trovão e o quadro fecha em seu rosto – artifícios que dão vida à sua preocupação. O mesmo acontece quando o psicólogo expressa o termo “homossexualidade” e o plano-detalhe de sua boca ilustra o tabu. É o veredito condenatório; um pecado está sendo cometido e os responsáveis precisam agir.
O afastamento leva a um luto por existir, salientado pelo figurino preto de Pauline, e ao ódio. A viagem para o mundo da fanstasia, em que as duas são princesas medievais, torna-se mais frequente – não à toa, elas começam a atender pelos nomes de Gina e Deborah. A falta de diálogo tira seus pés da realidade. Para piorar, Juliet descobre que sua mãe está tendo um caso e que seu pai sabe de tudo. A moral se inverte e o tamanho das grades aumenta. O uso preciso de ângulo holandese e a presença marcante de tons frios realçam a falência de ideais primordiais. A solidão nos permite pensar e, em certos casos, isso é um perigo. Destinadas a serem separadas, as garotas arquitetam um último plano. O problema é que, àquela altura, suas mentes já estavam corroídas por sentimentos destrutivos. O conto do esplendor termina num ato trágico. O sangue da insanidade é idêntico ao da alienação e da repressão.
Jackson deveria voltar a fazer filmes assim; sua capacidade para trabalhar temas delicados a partir da habilidade estética é rara. Melanie Lynskey e Kate Winslet, em seu primeiro papel, apresentam uma química notável, dominando a tela com suas presenças tempestuosas. “Heavenly Creatures” é uma pérola do cinema neozelandês.



