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Após roteirizar o polêmico “Kids”, Harmony Korine ganhou uma certa notoriedade. Eis que, em 1997, ele estreou na direção com o ainda mais controverso “Gummo”. O filme se passa em Xenia, Ohio, onde um tornado, alguns anos atrás, destruiu parte da região e da população.

A voz infantil que nos coloca a par dos acontecimentos já instaura uma atmosfera soturna e pessimista. “O meu vizinho foi despedaçado. Ele costumava andar de bicicleta com seus amigos. Nunca encontraram sua cabeça”. A cidade está em destroços, rodeada de lixo e terrenos baldios. O garoto com as orelhas de coelho, um cigarro na mão e sem camisa é mais um sinal de que as coisas estão erradas ali. Korine evita, a todo instante, que “Gummo” seja uma experiência confortável e “prazerosa”, confeccionando uma narrativa híbrida que varia entre a ficção e um retrato “documental”. Existem os personagens centrais, que acompanhamos sem o compromisso de uma trama, e os personagens que surgem para contextualizar a situação geral, apresentados a partir de gravações, imagens de arquivo e em sequências “avulsas”. 

Ao subir dos créditos, o que fica é uma profunda sensação de vazio e a certeza de que aquele é um lugar maldito. Aqueles adolescentes foram amaldiçoados; estão fadados a uma existência lúgubre e destrutiva. Os prazeres que buscam são imediatos e geram somente repulsa. Não há empatia nem afeto, pois não há lei nem moral. Sem autoridades nas ruas e nas casas, a cidade é dominada pelo ódio dos pervertidos e dos pobres coitados que não tiveram a oportunidade de evoluir. Alguns falam em suicídio; outros numa vontade irremediável de matar; e a maioria se droga, cheirando cola. Esses jovens foram ensinados, desde cedo, a apenas sobreviver. O negócio mais simples e lucrativo é o de gatos mortos. Sim, os garotos matam os pequenos felinos em troca de dinheiro – e Korine não alivia para o espectador. 

— Sabe o que vou fazer amanhã?
— O que?
— Vou a um manicômio?
— A um manicômio?
— Vou arranjar uma gracinha para estuprar.

Solomom e Tummler são, essencialmente, maus; todavia, há de se compreender que ambos são, antes de qualquer coisa, vítimas de um espaço que corrói a humanidade e destrói as esperanças. É como se o cérebro dos personagens não tivesse se desenvolvido. Eles não sentem medo ou remorso, o que os permite criar suas próprias leis, baseadas numa absoluta imoralidade. Dot e suas irmãs passam os dias perambulando, colando fita isolante em seus mamilos, na esperança de terem seios maiores, e resistindo ao assédio constante. Korine, com sua mise en scène meticulosa, demonstra compaixão pelos jovens. Enquanto Solomom e Tummler colocam os gatos num saco, vemos, ao fundo, uma cama elástica abandonada.

Na sequência mais nauseante do filme, Solomom toma banho numa banheira cuja água se assemelha a de um esgoto, ao mesmo tempo em que come um prato de macarronada e uma barra de chocolate. No banheiro, também ao fundo, há algumas bonecas com um aspecto bizarro. Korine esconde os elementos “inocentes” e “puros” em seus enquadramentos, ressaltando que a realidade daqueles personagens é a banheira do esgoto; a banheira da perversidade, da falta de educação e de perspectiva. A direção de arte transforma as ruas em zonas insalubres e as casas, em depósitos radioativos. A quantidade exorbitante de lixo espalhado e amontoado serve de pano de fundo perfeito – o mesmo vale para as camadas acinzentadas propostas pela fotografia. Solomom quer se exercitar, então junta dezenas de talheres para malhar os bíceps.

Korine adota um realismo (quase) desagradável, provando ser um cineasta autoral e corajoso. É fácil detestar “Gummo”, mas há algo de especial neste filme; uma qualidade que somente os filmes que desbravam convenções possuem. Korine fecha o quadro para mostrar o efeito da droga nos garotos e constrói as cenas com uma secura assombrosa, como se estivesse “meramente” observando. A montagem, através de transições abruptas e de uma “organização caótica”, também é fundamental para a fomentação de uma atmosfera seca e sombria. A trilha sonora foca no heavy metal, um som que faz jus à brutalidade das imagens; no entanto, a música que sintetiza a obra é “Crying”, de Roy Orbison. O elenco, a não ser por Chloe Sevigny, é composto por “não atores”, o que reforça o talento precoce de Korine, que extrai performances cortantes – destaque para Nick Sutton.

“Gummo” é um marco na história do cinema independente americano.

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