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“Desde que me lembro, sempre quis ser um gângster. Para mim, ser gângster era melhor que ser Presidente dos Estados Unidos”.

Os personagens em “Goodfellas” vivem numa espécie de realidade paralela, onde as coisas são conquistadas com um mero olhar. Oriundos de famílias humildes, eles se eximiram de responsabilidades naturais e se tornaram sub-humanos que desconhecem a normalidade e agem como animais selvagens.

Diferentemente de “O Poderoso Chefão”, por exemplo, em que os Corleone se comportam e agem “suavemente”, os mafiosos aqui se aproximam da realidade. Suas emoções e atitudes são abertas. O ódio, a alegria, a paranoia e o medo estão nos olhares e na expressão corporal dos personagens, que não vestem ternos elegantes, parecem fazer questão de expor quem são. O trio central está longe do topo da pirâmide, pelo contrário, são bandidos dispostos a correr qualquer risco “calculado” para ganhar alguns milhões.

Ser um mafioso significa ter poder e dinheiro. Quanto maior a riqueza, maior o ego e a ganância; quanto maior a ambição, maior a queda. Homens que não se contentam com muito, que precisam estar a todo instante provando que são capazes de qualquer coisa. Eles não têm chance, um mero ruído é suficiente para derrubá-los. É como um dominó, basta uma peça tropeçar para que o restante desmorone. A ideia de comunidade fechada é contraditória. A amizade e o senso de companheirismo são nítidos, no entanto, não é preciso muito para que alguém seja apagado. No fundo, é um grande jogo de aparências em que o objetivo é sair ileso e seguir adiante.

O maior medo de Henry Hill era ser “um ninguém”. Em seu pacato bairro, o crime organizado sempre foi visto como uma grande oportunidade e ele rapidamente se enfiou naquele meio. Paulie, o chefão, é o sujeito mais razoável e inteligente, o único que pensa no grupo e enxerga os males do egoísmo. Aos treze anos, o protagonista tinha mais dinheiro do que a maioria dos adultos, o que é narrado com entusiasmo. A principal lição aprendida por Henry é que nunca se deve entregar um parceiro.

O tempo passa e dentro daquela engrenagem, três personagens se destacam como os mais ambiciosos.

Jimmy é altamente respeitado. Não sei se respeito é a melhor palavra, as pessoas sentem medo dele. Matar é algo natural e até prazeroso, faz parte do trabalho. Seu olhar denota a frieza de um psicopata que não mede esforços para se livrar de qualquer suspeita e seu sorriso pode ser um gesto falsamente cordial para atrair um colega e apunhala-lo na hora certa.

Jimmy é imponente e amedrontador, inicialmente não desperta empatia, é o tipo de pessoa que agradamos por receio. Entretanto, Scorsese, inteligentemente, o tira das ruas e o coloca em casa. Uma colagem de fotos dele com Henry de férias, se divertindo com sua esposa e segurando carinhosamente o bebê do amigo enriquece o personagem. Jimmy tem seus momentos genuinamente leves e acabamos nos afeiçoando pelos mafiosos. O realismo e a brutalidade das cenas violentas deixam o espectador numa posição difícil, sabendo que está se preocupando com seres terríveis. A frieza inicial dá espaço ao descontrole. Jimmy deixa a raiva tomar conta de seu juízo, o que o transforma numa figura, gradativamente, mais agressiva, nervosa e agitada. Ele se posiciona como sábio, todavia, certas atitudes expõem uma profunda ingenuidade.

Tommy é um dos sujeitos mais insanos, imprevisíveis e engraçados da história da sétima arte. Em determinado momento, ele mata um garçom pelo simples motivo de ter recebido uma resposta “minimamente efusiva” após tê-lo ofendido inúmeras vezes. A icônica cena em que Henry diz que ele é engraçado resume impecavelmente sua personalidade e o efeito que tem perante os outros.

Sua psicopatia não tem limites e as consequências aparecem. Assim como acontece com Jimmy, a gradual ganância e fome por poder acentuam suas características.

Henry, diferentemente dos demais, não é fascinado por violência e Scorsese ratifica isso ao deixá-lo como um espectador nas sequências em que seus amigos matam sem piedade. Para ele, a máfia significa pertencimento, diversão e respeito. A entrada no “Copacabana”, filmada pelo diretor a partir de um magistral plano sequência, ressalta a sua paixão pelo o que faz, pela vida fácil, sem obstáculos. Ao mesmo tempo em que tenta controlar os impulsos de Jimmy e Tommy, Henry sabe que se recusar a participar de uma “execução” não é uma opção. O protagonista gosta de ostentar, não à toa, ao pedirem para ele dar uma segurada e não gastar o dinheiro de um recente assalto, a primeira coisa que faz é comprar a árvore de natal mais cara possível. Empregos ordinários e suar por um salário comum enojam Henry. Nesse sentido, seu arco é o mais doído do filme. Para quem conseguia tudo com uma ligação, terminar isolado, comendo macarrão instantâneo com ketchup frio tem o efeito de um tiro.

Sua narração permeia a trama inteira, ajudando a contextualizar a realidade criminosa com o olhar de quem a admira. Henry retrata as situações de forma vivaz e genuína, mudando de entonação de acordo com a fase. A descrição dos amigos é precisa, ele os conhecia a ponto de compreender gestos invisíveis. A cena em que Henry entra em um bar e, Scorsese, a partir de um longo plano apresenta todos os “conhecidos” é incrível por juntar a direção fluida e a narração empolgante – simboliza a vida do protagonista e salienta sua satisfação por se sentir parte de uma família.

Entendemos perfeitamente o funcionamento das coisas e, ainda assim, não deixamos de torcer por Henry. Sua onipresença nos torna seus amigos e a quebra da quarta parede encerra um forte ciclo de intimidade.

Mais do que Jimmy e Tommy, cujas mentes também estão voltadas à vingança, o protagonista é um jovem deslumbrado e ingênuo, alertado por Paulie para não se envolver com drogas.

Henry se autodestrói, o que fica evidente em sua terrível aparência no terceiro ato e na sequência em que cisma com um helicóptero enquanto lista trezentas coisas que precisa fazer – paranoia e ansiedade. A voz acelerada e o olhar desenfreado são emulados pela montagem e pela câmera, que coloca o helicóptero mais perto do que realmente está.

O espaço dado para Karen, esposa do protagonista, é importante, adiciona uma nova ótica. Oriunda de uma boa família, ela se apaixona por Henry e embarca numa espiral negativa, levando-a ao buraco emocional, destacado em suas roupas de tons pastéis e na aparência desleixada. Karen firmou seus pés em um ambiente machista, precisa lidar com traições e inversões de papéis. Ela se torna a grande parceira de Henry, o ajuda no crime e essa mudança é evidenciada em figurinos vermelhos, na vulgaridade maior e ansiedade decorrente das drogas. Sua pureza inicial pode ser vista no casamento, quando, ao receber centenas de cheques de todos os “familiares” do marido, relata a situação ingenuamente. O fato de Scorsese incluir a narração de Karen denota cuidado com suas personagens femininas.

Como várias obras do diretor, “Goodfellas” não se move através de uma trama convencional. São situações específicas e brilhantemente pontuadas que conferem complexidade aos personagens. A narração, o constante uso de freeze frames para reforçar o peso de certos momentos e a elegância e leveza dos movimentos de câmera são acompanhados de cenas cativantes e divertidas. A abordagem de Scorsese é empática, torna até as cenas mais violentas passíveis de “leves sorrisos”, seja pelo uso de uma determinada música, seja pela a presença de Tommy, seja pela fala do protagonista.

A cena em que Henry acerta repetidas coronhadas no rosto do vizinho de Karen, que tentou estuprá-la, não é apenas satisfatória, é a prova de que se tratando de violência, Scorsese é o que melhor consegue transpô-la do papel para a tela. Não há cortes, cada golpe é desferido com uma intensidade honestíssima.

O travelling que apresenta o rosto dos personagens em um show traz uma certa tranquilidade, contrastando com a realidade em si.

Eles são bons companheiros e o espectador embarca nessa jornada.

Somente no ato final que a derrocada se inicia e Scorsese, gênio que é, muda completamente sua abordagem. Os cortes frequentes e os close ups ressaltam o pânico de Henry e Karen; o rápido travelling revela a sensação de estar drogado; os movimentos deixam de ser fluidos, aderindo a uma notável histeria – câmera atordoada, parece ser mexida diretamente na mão -; o dolly zoom – mistura de zoom e travelling no qual o centro permanece em foco e o ao redor fica instável – é a marca de um mestre. De que outra maneira Scorsese poderia enfatizar que a relação entre Jimmy e Henry havia acabado?

As canções escolhidas pelo cineasta ratificam o seu bom gosto e ditam o tom das sequências. “Sunshine Of Your Love” dá uma conotação específica ao traveling com câmera lenta em direção a Jimmy – ele vai agir…

Da mesma forma, “Layla” marca a carnificina sinfônica do personagem.

No momento de maior aflição, Scorsese emenda seis canções seguidas – “Jump Into The Fire”, “Memo From Turner”, “Magic Bus”, Monkey Man”, “What Is Life” e “Mannish Boy” – a fim de realçar a inquietação de Henry.

Em contrapartida, “Then He Kissed Me” torna a entrada pelos fundos do “Copacabana” ainda mais triunfal e memorável. E “Atlantis” estiliza a cena em que Jimmy e Tommy matam Billy Batts.

O último e abrupto corte é bem significativo: na máfia, você tem tudo ou nada, simples assim. Os tiros de Tommy são a condenação de Scorsese a essa vida criminosa e detestável. Ele nunca aliviou para os mafiosos.

O vermelho está presente em várias esferas narrativas e não simboliza apenas a violência e a máfia, é um julgamento moral feito pelo diretor – estão fadados ao fracasso, ao inferno.

A direção de arte utiliza o dourado para representar poder, presente em relógios e decorações. A transformação da residência de Henry define o seu deslumbramento e ganância. No fim, a casa, de tão luxuosa e enfeitada, parece irreal.

A fotografia aposta em tons escuros, ressaltando a natureza dos mafiosos – animais noturnos. A noite é silenciosa, quando os crimes acontecem. Não à toa, Jimmy surge das sombras.

A montagem é responsável por elevar o humor – o timing dos cortes é elogiável – e por estudar os personagens, como, por exemplo, na já mencionada sequência em que Henry compra a árvore de natal mais cara.

Sem o trio De Niro, Pesci e Liotta, “Goodfellas” não seria “tudo isso”. A química entre os atores é incrível. São as pequenas interações que dão volume ao espetáculo, que cativam e puxam o espectador para dentro do filme. Eu poderia citar diversas passagens inacreditavelmente divertidas, mas o texto teria no mínimo quinze páginas.

Cada um compõe seu personagem de maneira intensa e sutil – trejeitos dão vida às caracterizações – e é graças a qualidade das interpretações, que é tão simples identificá-los e diferenciá-los.

“Goodfellas” é uma obra prima e a comparação com “O Poderoso Chefão” é justíssima.

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