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“Family Diary” começa com Enrico recebendo um telefonema: “Seu irmão morreu”. A partir daí, a narrativa investe numa viagem pelas memórias do protagonista. O nascimento de Lorenzo, o irmão, coincidiu com o falecimento da mãe.

“Todos diziam que mamãe morreu por sua causa. Para mim, você havia morrido com ela”, diz Enrico. Separados desde cedo, já que Lorenzo foi adotado por um homem rico, os dois não estabeleceram nenhum tipo de relação. Só por esse contexto, é possível ter um vislumbre da melancolia que cerca “Family Diary”. 

Passam-se alguns anos. Lorenzo, crescido, vai atrás do irmão. O laço é sanguíneo, mas eles falam sobre famílias diferentes. O trabalho de figurino, que associa o primogênito a roupas escuras e o caçula, a cores claras, é essencial para o contraste dos personagens. Lorenzo é educado e generoso, um reflexo da educação que recebeu e dos privilégios aos quais teve acesso; Enrico, conhecedor dos percalços da vida, é mais pragmático e seco. Embora tentem articular diálogos com algum nível de intimidade, nada soa confortável, o que é reforçado por Zurlini, que valoriza o silêncio e concebe quadros nos quais a distância entre os dois é nítida – mesmo próximos, é como se estivessem na presença de estranhos; não à toa, Enrico só toca em Lorenzo quando ele está dormindo. O pequeno apartamento do protagonista revela, além de sua precariedade financeira, a solidão que também conversa com a existência de Lorenzo, servindo de força motora para uni-los. 

A fotografia não esconde sua predileção por tons frios, potencializados por Zurlini, que filma seus personagens em meio às ruas vazias, quase fantasmagóricas. O cineasta associa Enrico às sombras, ressaltando seu vazio afetivo e as dificuldades que tem para se abrir. Sua tosse desenfreada simboliza a sua insistência em não investigar a fundo suas emoções, admitindo uma certa imutabilidade – sua trajetória foi tão espinhosa, que ele parece ter desistido de “algo a mais”. Lorenzo é expansivo e demonstra um interesse enorme por detalhes do passado, principalmente os que envolvem sua mãe. Sua inocência e afeição genuína pelas nuances humanas expandem a percepção de Enrico, antes, pouco passional. Em determinado momento, o protagonista diz uma verdade ainda velada pela sociedade: sem o componente afetivo, o laço de sangue pouco importa. 

A Segunda Guerra Mundial não chega a ser abordada, mas é um pano de fundo que engrandece o senso de melancolia e desesperança da obra. Zurlini investe em subtextos políticos, afirmando que seus personagens são produtos de seus meios. Aquele que pouco teve, torna-se politicamente engajado e atento às mazelas sociais; o outro, vinculado ao luxo, soa ingênuo e, por vezes, alheio à realidade. Quando ambos se encontram na mesma classe social, a união é visivelmente maior; todavia, não por esse motivo: àquela altura, eles são mais do que irmãos, são amigos. Zurlini acredita que a família é a maior oportunidade que temos de construir vínculos belos e honestos. Não é necessário viver algo grandioso, apenas passar tempos valiosos. A avó dos irmãos passou seus últimos meses numa casa de repouso, que é descrita pela própria como um misto de exército e prisão. Acostumada à rigidez “carcerária”, ela se delicia, por exemplo, com a companhia dos netos num almoço de páscoa. Zurlini abre o quadro, expondo o ambiente por completo, dando ao espectador a oportunidade de sentir a liberdade experienciada por aquela senhora. 

A narrativa contempla os espaços que regem a relação entre os irmãos – nada é imediato. O tempo é paradoxal, sendo, simultaneamente, o melhor amigo e o pior inimigo do ser humano. O tempo permite que, no fim, Enrico e Lorenzo se enxerguem com amor. O tempo abrevia tudo que há de mais sagrado. É lindo acompanhar a entrega de Enrico no hospital. É trágico vê-los ter que passar pelo inferno. A imagem de Lorenzo, na escuridão, encolhido em sua cama, observando uma santa é poderosa. Nesses casos, as iconografias religiosas deixam um gosto ambíguo, puxado para o amargo, na boca. Pela primeira vez, Enrico e Lorenzo surgem com figurinos de cores iguais. Zurlini deixa o distanciamento da mise en scéne para trás, aproximando-os de maneira visceral, em planos fechados. “Eu não tenho ninguém além de você”. 

Marcello Mastroianni é um dos gigantes da sétima arte. Cada decisão artística sua é de uma humanidade rara. Seu choro derradeiro não emociona graças à intensidade, mas por notarmos, antes das lágrimas escorrerem, que ele está comovido. Mastroianni compreende a potência do arco de Enrico. O mesmo pode ser dito sobre Jacques Perrin, que, ao lado da lenda, não decepciona. Pegue a primeira aparição de Lorenzo, compare com a última e sinta a dor do adeus.

“Family Diary” é um dos melhores filmes a ter vencido o Leão de Ouro.

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