“Strange Days” é um filme de conceitos muito bem estabelecidos e um universo bastante original.
Los Angeles está um caos. A polícia espanca civis; a discriminação atinge níveis exorbitantes; a promiscuidade faz parte do cotidiano; as ruas são movidas por desordem, violência e sujeira. Não existem ambientes convidativos em “Strange Days”. As boates são destinadas a grupos específicos e a música marca bem essa opressão, assim como os feixes de luz que invadem as frestas das janelas. O mesmo acontece nas casas, que ressaltam um estado constante de alerta. Bigelow usa de forma recorrente a fumaça para salientar brutalidade e este talvez seja o seu filme que mais necessite desse tipo de elemento.
Não à toa, o protagonista é um ex-policial que trabalha no mercado negro. Quando vamos ao cinema buscamos novas lentes, pegar emprestado um olhar diferente para obter prazer e saber. Somos outra pessoa, a câmera subjetiva reforça isso. Embarcamos nessa jornada e tememos pelo pior, no entanto, como nos filmes, ao final do passeio, voltamos à realidade. Além de feia e degenerada, a Los Angeles idealizada por James Cameron – roteirista – e Kathryn Bigelow é habitada por seres cujas vidas são tão vazias, que só encontram alívio e felicidade a partir de emoções alheias. Eles sobrevivem, se escondem, fingem e precisam de um aparelho cerebral para experimentar sentimentos genuínos. A tristeza abordada pelo roteiro é sutil e devastadora. Os personagens podem não demonstrar, mas estão em um estado desesperador de solidão e insegurança. A verdade é que ninguém se conhece e o medo de se expor vem ao encontro do conforto artificial.
Lenny Nero tem acesso às mais diversas emoções, transmitidas e alocadas em discos vendidos no mercado negro. Homens casados podem trair suas esposas sem remorso. Eles sentem o sexo, porém não fazem, tendo apenas uma experiência sensorial que simula de forma intensa e verdadeira o ato sexual. Você pode ver o que quiser, Lenny vende os desejos mais sujos e proibidos. O pacote só exclui mortes, o chamado “blackjack”, que não faz parte de sua “ética” de trabalho. Ele tem os seus discos/arquivos favoritos e suspira enquanto os “assiste”. Preso estritamente aos negócios, Lenny relembra os melhores momentos que teve com o amor de sua vida. Esse é o ápice de seu cotidiano, quando sua feição denota honestidade e seu lado humano aflora. Há um mundo caótico ali fora, com pessoas presas ao passado, ao receio de acordar para a vida. O mesmo pode ser dito do cinéfilo, que precisa de outros olhos para satisfazer aquilo que julga ser impossível.
Vivido por Ralph Fiennes com muito carisma, o protagonista está sempre animado e achando saídas para os seus problemas com sua lábia e sarcasmo peculiares. Lenny parece não ter fragilidades, até encontrar Faith em uma boate, agora, com outro homem. Seu rosto não consegue esconder a melancolia ao ver e não poder tocar em alguém que ama tanto. Os discos são drogas: aliviam, viciam e te prendem a uma nova realidade. Toda essa questão futurística e tecnológica casa perfeitamente com a nossa realidade digital. Afinal, as redes sociais são espelhos que refletem a imagem que queremos projetar de nós mesmos. Queremos conforto e às vezes esquecemos que para isso, precisamos do confronto.
O roteiro questiona os embates entre os negros e a polícia, que opta por demonstrações de força. A comunidade afrodescendente luta por direitos, todavia, acuada pela violência, se dispersa e perde oportunidades de fazer as melhores escolhas. O que o texto e a direção enfatizam e retratam de maneira brilhante, é que a mudança deve partir de uma união absoluta, como vem a acontecer no final.
Em um futuro no qual homens precisam de máquinas para transar e mulheres se resumem a objetos que saciam desejos obscuros à distância, não há diálogo, nem envolvimento, somente exploração. Faith age apenas por interesse – cada passo seu é calculado. Se um determinado homem está ao seu lado, é porque ele a colocará em uma posição melhor ou a está ameaçando. Não sabemos se Faith ama Lenny, mas temos certeza de que se ela sente algo por alguém ali, é pelo protagonista. Suas roupas e seu cabelo são marcas expressivas de uma mulher que abdicou de emoções para se dedicar à submissão. Praticamente todas as personagens femininas que aparecem no filme são prostitutas.
Por esse motivo Mace é tão importante. Uma mulher negra que busca seu espaço no meio da selva e luta por justiça em pé de igualdade contra qualquer homem. Sua relação com Lenny é interessante, iniciando como uma forte amizade e terminando como o princípio de um recomeço. Ela entende que o amor não é algo que se controla, mas insiste que a vida é preciosa demais para se voltar a lembranças que se esvaíram com o tempo. Mace sabe o que aflige Lenny e está disposta a ajudá-lo.
Mesclando de forma brilhante entre a discussão por trás da tecnologia e a luta por igualdade racial, o roteiro peca apenas ao criar uma trama investigativa que alterna entre o confuso e o óbvio. Outras questões sobre o funcionamento da tecnologia ficam meio inconclusivas, entretanto, isso pouco importa. A longa duração também é um pouco sentida, sendo este um ponto negativo.
Há um número expressivo de excelentes sequências de ação e Bigelow, novamente, demonstra destreza ao conduzi-las. A diretora utiliza planos subjetivos e fechados a fim de tornar a experiência mais claustrofóbica e, muitas vezes, opta pela câmera lenta, reforçando o clima caótico das ruas de Los Angeles. Ela dá tempo para o espectador se acostumar com o ambiente idealizado e depois nos joga num frenesi absoluto. O trabalho de montagem é fantástico, casando perfeitamente com a proposta atmosférica da cineasta.
A trilha sonora, com batidas de punk, música eletrônica e jazz, acompanha muito bem a trajetória de Mace e Lenny.
O design de produção visa a precariedade a partir do uso de cores opacas nas paredes, pichações e ambientes destruídos. A fotografia foca em tons escuros que realçam o clima de desordem na cidade e, instantaneamente, remetem ao gênero Noir, e cores fortes nos feixes de luz que invadem boates e as moradias, salientando a violência e o sentimento de impotência dos cidadãos.
O final apresenta boas reviravoltas, é extremamente satisfatório e conclui com maestria o que havia sido discutido desde o início. A mudança está em pequenos gestos e atitudes, mas também na inserção de certos elementos que denotam paz e felicidade.
“Strange Days” é uma obra de ficção científica que merece ser redescoberta.
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