Ao longo das décadas, Sidney Lumet construiu uma das carreiras mais singulares de Hollywood. Após o sucesso estrondoso de “Network”, ele realizou uma verdadeira joia, um filme que, infelizmente, foi esquecido pela maioria. “Equus” gira em torno de Martin Dysart, um psiquiatra de renome, cujo novo paciente, Alan Strang, cegou seis cavalos no estábulo no qual trabalhava. O início, em que Martin, desconcertado e com parte do rosto imerso às sombras, fala diretamente para a câmera, a narração e os relatos sobre o comportamento incompreensível de Alan, deixam o espectador ansioso para o primeiro encontro entre os dois. O que torna “Equus” tão singular, além do delito do jovem, é o caráter que as sessões psiquiátricas começam a ter na medida em que Martin se depara com o vazio descomunal de sua existência. Os tons frios e a falta de cores intensas no consultório não se referem somente aos pacientes, mas a um homem que, acostumado a cuidar dos outros, esqueceu de si mesmo.
A questão envolvendo Alan, apesar de objetiva, é dotada de uma série de camadas que precisam ser cuidadosamente removidas pelo psiquiatra. Por que ele cegou os cavalos? Por que atacou justamente os olhos? Qual a sua relação com os equinos? A princípio, Alan não coopera, obrigando Martin a buscar respostas com seus pais. Dora, a mãe, é uma católica fervorosa e sempre leu trechos da bíblia para o filho. Em algumas das passagens, cavalos eram enfaticamente citados. Frank, o pai, por sua vez, é pragmático e contra as pregações da esposa – ou seja, a religião é um tabu na residência dos Strang. Em um flashback, vemos o primeiro contato de Alan com um cavalo. Ele estava na praia, cavando um buraco na areia, quando, de repente, uma criatura majestosa surgiu. O contra-plongée confere imponência ao animal e a cavalgada é retratada por Lumet como uma experiência transcendental. A direção de arte é precisa ao lotar o quarto de Alan de imagens enigmáticas, sendo a principal, posicionada para ser adorada e contemplada, a de um cavalo.
Tudo bem, o garoto não quer se abrir, todavia, temos informações suficientes para afirmar que ele oculta uma gama considerável de sentimentos e que se culpa pela inadequação social. O toque sutil no ombro e a introdução a alguns jogos são truques de um doutor empático. O gravador é o melhor amigo dos tímidos e oprimidos; é o objeto que os escuta sem julgá-los. “Eles nos dão a sua força e nós lhes damos chicotadas”. A riqueza de detalhes intriga e perturba; Alan poderia facilmente ser vilanizado, mas o roteiro está interessado em entendê-lo e abraçá-lo, afinal, estamos falando de um rapaz atormentado, não de um monstro. O silêncio de uma casa dominada por pais ingênuos e mal instruídos abre portas para novos silêncios, cada vez mais complexos. Lumet explora o poder das imagens, provando que Alan é sexualmente atraído por cavalos. A questão vai além, atingindo as profundezas de uma alma impregnada pela religião e o peso que “Nosso Senhor” carregou em seu calvário. O cavalo não é apenas um animal, mas uma representação divina que carrega os pecados da humanidade em suas correntes. Sim, o Deus de Alan é Equus, aquele que ele venera por sua representatividade e corpo esbelto. As imagens de Jesus e do cavalo, lado a lado em seu quarto, não são destacadas à toa. Isso sem falar no belíssimo plano em que a sombra de seu rosto e cabelo são complementadas pela crina do cavalo – relação simbiótica, de servo e majestade.
No seu primeiro momento de intimidade sexual com uma garota, a tela ganha, aos poucos, uma tonalidade avermelhada, salientando a sensação de culpa de Alan, que não pode sentir atração por nenhum outro ser e deve ser fiel ao Deus que o observa. O que seu pai fazia no cinema de filmes adultos? A sociedade é perversa e as máscaras estão escorregando. Martin, imerso nessa intensa investigação, tem alguns embates ríspidos com Alan, que, inteligente, sabe como provocá-lo. Diante de um rapaz atraído por paixões avassaladoras, o psiquiatra admite o vazio que tomou conta de sua vida; seu casamento inexiste, ele não tem filhos e não aspira mais nada. O consultório, diminuído por Lumet, que opta por muitos planos fechados, ganha a conotação de purgatório. Ali, esses personagens “opostos” se respeitam, discutem e se expõem. Martin pode até libertar Alan de Equus… e depois? O que representa a destruição de uma paixão? Sem dor, sem paixão; uma vida de pequenos lucros e pequenas perdas. O que será de Alan? Eternamente anestesiado? As sombras do presente reforçam o desespero de um sujeito que se acostumou a estar à frente de qualquer dilema. A única certeza é que, ao adaptar a premiada e controversa peça teatral de Peter Shaffer, Sidney Lumet nos presenteou com um verdadeiro tour de force.
O cineasta da Pensilvânia é famoso por sua direção de atores e aqui não é diferente. Em sua última grande performance, Richard Burton equilibra perfeitamente a racionalidade/calma de um psiquiatra com a explosão/impaciência de um homem em frangalhos. Peter Firth encarna o atormentado Alan com propriedade. O ator passa a sensação de desconforto através de olhares perdidos e de uma entrega corporal absoluta.
“Equus” é a obra prima mais inquietante de Sidney Lumet.