Se um alienígena chegasse à terra e me perguntasse: “O que é um musical?”, eu não titubearia em apresentá-lo a “Duas Garotas Românticas”. Em seu quarto projeto, Jacques Demy sintetizou o gênero mais gracioso e lúdico da sétima arte. Assim como em “Os Guarda-Chuvas do Amor”, os personagens aqui estão em busca do amor. O filme de 1964, apesar de impressionar pela exuberância da direção de arte e por ser inteiramente cantado, narra uma história dura e relacionável; já este, de 1967, tem no seu cerne a pureza, a idealização e a alegria quase constante. “Encontrei o homem da minha vida” é uma frase imediata neste universo, independendo de uma análise elaborada para ser proferida – uma simples troca de olhares é poderosa o bastante. “Os Guarda-Chuvas do Amor” é coberto por uma fotografia azulada; “Duas Garotas Românticas” é dominado por espaços abertos e ensolarados.
Em termos de números musicais (coreografias), este filme é consideravelmente mais ambicioso, o que não é um demérito do antecessor, apenas a comprovação de que são obras com intuitos distintos. A câmera adentra a sala de dança, onde somos introduzidos a Delphine e Solange, gêmeas do signo de gêmeos, as românticas do título. Os figurinos, rosa e amarelo, marcam a ingenuidade e a doçura das protagonistas, garotas que anseiam por um amor que extrapole a esfera carnal. Maxence, um militar que está prestes a deixar a pequena Rochefort e retornar a Paris, canta sobre a mulher ideal. Ele também é pintor e seu último quadro é o retrato dessa idealização. Delphine, que já se relacionou com o dono da galeria, fica atônita com o quão parecida é com a moça da pintura e passa o filme na esperança de encontrar o homem que a pôs na tela.
Solange é compositora e sonha em ir com a irmã para Paris. Um dia, ao buscar seu irmão caçula na escola, ela se depara com Andy Miller, que veste uma camisa rosa e pergunta se pode vê-la novamente. Perdida na intensidade das emoções, Solange não sabe o que dizer, mas deixa sua partitura cair, deixando parte essencial de sua vida com o americano. A protagonista é uma frequentadora assídua da loja de música de Rochefort. O dono, Simon Dame, ainda sente a melancolia dos tempos passados, quando não se casou com a mulher que amava por um motivo, no mínimo, bizarro. Ele nutre simpatia por Solange e promete que entrará em contato com um antigo amigo americano que se tornou um compositor de extremo sucesso…
Yvonne, mãe das gêmeas e do pequeno Booboo e proprietária do bar local, cruza com praticamente todos os personagens, menos com o homem de sua vida, alguém que evitou por besteira. Ela passou uma temporada no México e ainda pensa no que seria a sua vida se tivesse se casado com o pai de seu filho. Demy é um mestre em amarrar as pontas e em confeccionar desencontros milimétricos, culminando num desfecho que leva o mais cético a abrir um sorriso genuíno. Todos estão na mesma rota, em busca de preencher um vazio, e a montagem, a partir de fusões que ligam os personagens, estabelece uma conexão elegante. A dança entre Andy e Solange é a prova de que, na arte, as palavras, muitas vezes, são descartáveis. Ao som do Concerto da protagonista, os dois atingem uma química inigualável – um misto de sedução, paixão e afeto.
Em “Duas Garotas Românticas”, tudo se encaixa. É por isso que ele é tão lindo e adorado. O cinema proporciona experiências que as pessoas nem sonham em ter. A pequena Rochefort, rodeada por cores magníficas – trabalhos irrepreensíveis de direção de arte e figurino -, é um delírio otimista e prazeroso de Demy. Catherine Deneuve, Françoise Dorléac, Jacques Perrin e Michel Piccoli estão fantásticos, no entanto, quem rouba a cena é o grande Gene Kelly.
Embalado por Michel Legrand em estado de graça, “Duas Garotas Românticas” nunca deixará de ser influente.