Quatro amigos decidem atravessar um rio que, muito em breve, não existirá. No caminho, eles se deparam com algumas figuras estranhas – o garoto do banjo é especialmente arrepiante. Desde o início, Boorman deixa claro que algo não está certo; que aquela aventura não terminará bem.
Mesmo avisados sobre os perigos do rio, os amigos mantêm o plano. Por que? O homem civilizado sente a necessidade de demonstrar força e de conquistar aquilo que não está ao seu alcance. “Deliverance” é um filme seminal sobre o embate entre civilização e natureza; homens urbanos e homens selvagens.
Lewis é contra o sistema; ou seja, enxerga naquela travessia uma fuga da pacatez e de regras que não fazem sentido. Ele é quem conhece o percurso e demonstra maior perspicácia em meio a situações adversas. Há, também, um caráter exibicionista em sua personalidade, decorrente, provavelmente, do vazio cotidiano que o cerca. Ed representa o outro lado da moeda: um sujeito que aderiu às convenções, tornou-se pai de família e gosta da previsibilidade diária. Boorman captura as belas paisagens naturais, ao mesmo tempo em que, a partir de planos abertos, cria uma sensação de desconforto, destacando a imensidão na qual os “pequenos” amigos estão inseridos. Invariavelmente, a posição da câmera passa a impressão de que alguém os observa. As interações entre os quatro são críveis e espontâneas a ponto de nos importarmos com eles e conhecermos as particularidades de cada um.
O meio molda o ser humano; somos feitos de carne e osso, mas não somos iguais. Quando Ed e Bobby são abordados por caçadores locais, já notamos tal diferença no linguajar e na aparência. Os caçadores falam como animais que desconhecem os princípios básicos da convivência humana. Territorialistas, eles não gostam que outras “espécies” invadam seu precioso ambiente, dando início a um festival de brutalidade. Boorman propõe um retorno aos primórdios, quando homens lutavam cegamente num jogo chamado “sobrevivência”. Os amigos estão longe de seu habitat natural e a natureza, com seus atalhos mortais e infernos verdes, não é misericordiosa. Para terem alguma chance, eles serão obrigados a abandonar suas próprias naturezas e a entender as particularidades da selva. O som dos animais é um sinal de desvantagem; o silêncio não traz paz, mas preocupação.
Boorman investe em close ups de rostos que combinam ódio, medo e perplexidade, com destaque para Ed, que assume um indesejado protagonismo. Após matarem um dos selvagens, num ato de auto defesa, o grupo se reúne a fim de decidir o que será feito com o cadáver. Essa conversa é perfeita ao reforçar o fato de que a barbárie afeta cada um de maneiras distintas. Drew fala em levar o caso para o tribunal e relatar o que aconteceu, sendo incapaz de perceber que, naquele lugar, as leis são diferentes – ali, quem vence é o mais forte, não quem apresenta os melhores argumentos. A culpa, para aqueles que vivem na linha tênue da legalidade, é um fardo impossível de se carregar. A viagem de lazer, rapidamente, ganha contornos aterrorizantes, transformando-se numa jornada de perda da inocência e de descoberta do seu lado animal. Boorman aposta numa abordagem realista, evitando estilizações, tornando tudo mais cru e brutal. Em determinado momento, o cineasta opta por planos subjetivos, propondo uma imersão absoluta ao espectador, que se vê diante do caos imprevisível. Outro artifício que serve à fomentação de tal atmosfera, é a manutenção da câmera no nível da água – a sensação de desespero é palpável. A montagem, através de cortes secos e precisos, amarra a tensão e confere impacto às situações mais turbulentas. Na natureza, não existe bom senso, apenas a astúcia e a força para prevalecer. A natureza é como uma sereia: bela e sedutora, mas ardilosa.
Os amigos podem até voltar para a cidade, mas terão que conviver com manchas de sangue; manchas que os atormentarão eternamente. A última cena é um nítido aviso sobre os perigos desse “curioso intercâmbio”. Burt Reynolds é o canastrão ideal para dar vida a um sujeito tão seguro de si como Lewis – quase um gavião arqueiro. Sim, os homens civilizados usam arco e flecha e os selvagens, armas de fogo. Jon Voight é um dos grandes atores de sua geração. Sua pureza e sensatez, salientadas por sua voz e expressão facial, são, aos poucos, corroídas, obrigando-o a tomar à frente.
“Deliverance” é uma obra prima que retrata, sem concessões, o embate entre mundos distintos.