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“Debi e Lóide” é uma obra prima. Isso mesmo que você leu. Ainda existe uma certa “elitização” no debate acerca da sétima arte e a comédia, constantemente, é tratada como um gênero inferior aos demais. Eu não sei que universo é esse no qual extrair risadas do espectador é considerado um esforço menor ou que não deve ser levado a sério. O que será que os mais eruditos, aqueles que acreditam que a comédia terminou depois de Howard Hawks, Ernst Lubitsch e Preston Sturges, dirão sobre um filme chamado “Debi e Lóide”? O bom crítico, acima de tudo, não pode se sentir intimidado por esse tipo de bobagem. Se um filme é bom, argumente; se for ruim, faça a mesma coisa. Eu não estou falando que todos devem amar “Debi e Lóide”, afinal, é uma obra que exige um desprendimento absoluto do espectador, que se depara com piadas escatológicas e sequências de puro besteirol. Resumindo: não julguem um filme antes de assisti-lo e não tenham vergonha de assumir que gostaram de algo.

Na trama, Lloyd, um motorista de limusines, se apaixona por uma cliente que “esqueceu” uma maleta no aeroporto. Disposto a lutar pelo amor de sua vida, ele e Harry, seu melhor amigo, atravessam os Estados Unidos, em direção a Aspen. Acontece que a tal maleta era, na verdade, o pagamento de um sequestro e havia sido posicionada no ponto exato para os criminosos a recolherem. A gagueira silenciosa, a trilha romântica e a mão no peito, como se tivesse sido atingido pela flecha de um cupido, são marcas de um sujeito obstinado. Lloyd e Harry vivem juntos, numa casa que pode ser descrita como um chiqueiro e que diz muito sobre suas conquistas. Eles não têm dinheiro, sonham em abrir um pet shop chamado “Eu Tenho Vermes” e dirigem uma van fantasiada de cachorro. “Só compre o essencial”, alerta Harry. Em seguida, vemos seu inseparável camarada com um chapéu gigantesco e outros utensílios. Os criminosos percorrem os rastros da dupla, que cai na estrada.

A estrutura de “road movie” proporciona uma fluidez imensa ao filme, que se move através de situações inusitadas. Em uma das sequências mais engraçadas, vemos um garoto cego brincando com um periquito decapitado. Sim, parece de mau gosto, no entanto, dentro do contexto trabalhado pelo roteiro, é digno de gargalhadas incontroláveis. Em outro momento, Lloyd perde a batalha para sua bexiga e urina em diversas garrafas de cerveja. O policial, achando que vai se dar bem, dá um saboroso gole em uma delas. Antes de partirem, Lloyd afirma que está cansado de não ter ninguém. Peter Farrelly nos dá uma breve demonstração de como funciona a mente apaixonada do personagem, provando que é dono de uma imaginação que merece ser estudada. Onde a dupla decide dormir? Em um motel de lua de mel, com direito a banheira em formato de coração.

Enquanto isso, os criminosos se convencem cada vez mais que estão diante de profissionais, seres de uma astúcia sobre-humana. Os amigos desconhecem convenções sociais básicas, o que é ressaltado em diálogos casuais e em cenas cujo intuito é justamente expô-los. Eles brincam de pique-pega dentro do carro, gritam no ouvido de estranhos e quando uma moça joga uma bola de neve em Harry, este se sente no direito de retrucar com uma bolada agressiva – novamente, no texto pode soar grosseiro, mas Farrelly tem total controle sobre o tom da obra. Após uma série de imprevistos, os dois chegam em Aspen. Lloyd não se lembra do sobrenome de Mary, então toma a decisão lógica: olhar na maleta. Infelizmente, não tem nenhuma Mary Samsonite na lista telefônica. Não entrarei em maiores detalhes, digo apenas que o roteiro encontra maneiras de nos surpreender e de manter o nível cômico lá em cima.

Jim Carrey prova que é, de fato, um dos maiores comediantes contemporâneos, conferindo ingenuidade e sutileza a uma figura que poderia ser intragável. Seus trejeitos grandiloquentes são inimitáveis e fundamentais para a caracterização de um personagem que fica entre o inocente e o descerebrado. Jeff Daniels, que considero um ator subestimado, tinha a difícil missão de contracenar com um especialista no gênero e se sai muitíssimo bem. Harry é menos abobalhado, porém não a ponto de o levarmos a sério – e esse meio termo não é fácil de se alcançar. E, claro, o mais importante: gostamos imensamente dos dois, caso contrário, a jornada seria enfadonha e não teria propósito algum.

Peter Farrelly, que dirigiu o excelente “Quem Vai Ficar com Mary?”, atingiu seu ápice nesta (permitam-me a redundância) obra prima, um dos pontos altos do cinema norte-americano na década de noventa.

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