“Death And The Maiden” se passa em um país – não mencionado – da América do Sul, após um regime ditatorial. Essa frase talvez dê a ideia de algo grandioso, talvez um épico. Não, pelo contrário, o filme se limita basicamente a uma única locação e é mais uma prova definitiva de que Roman Polanski é um dos maiores mestres quando o assunto é criar atmosferas tensas e angustiantes.
Em uma noite chuvosa, Pauline prepara o jantar e aguarda o seu marido, que não aparece. A rádio informa que ele foi escolhido pelo Presidente para ser o Chefe do comitê de direitos humanos, informação que a afeta um pouco. Escobar chega em casa, seus pneus furaram e ele teve que buscar uma carona. Pauline sabe que o trabalho lhe dará visibilidade e o parabeniza, todavia, não deixa de demonstrar uma certa inquietude. A protagonista foi uma prisioneira da Ditadura e tem convicção de que o comitê é uma farsa, uma jogada política que, no fundo, quer fomentar uma imagem, não prender criminosos.
Escobar é um sujeito sério e fará de tudo para mudar esse sistema. Suas palavras não são mentirosas, Pauline o ama e, por alguns segundos, eles dividem intimidades, como um casal apaixonado.
Prontos para dormir, recebem uma inesperada visita: Roberto Miranda, o médico que deixou Escobar em casa e acabou esquecendo de devolver os pneus. Decidida a ir até a sala e se apresentar, a protagonista identifica aquela voz e se esconde. Ela foge, rouba o carro de Roberto, uma de suas fitas e solta o automóvel de um penhasco. Enquanto isso, bêbados e sem entender muito bem a situação, os dois conversam, dão risadas e estreitam os laços. O médico, na verdade, conhecia Escobar, admirava o seu trabalho e não queria perder a oportunidade de conhecê-lo.
Sem carro e alcoolizado, Roberto é obrigado a dormir ali mesmo, no entanto, no meio da madrugada, Pauline retorna, deixa o hóspede inconsciente e o amarra em uma cadeira. Sua voz, seu cheiro e as escolhas de palavras eram bastante específicas. A protagonista não tinha dúvidas: mesmo vendada enquanto era torturada, tinha certeza absoluta de que Roberto foi o doutor que a estuprou diversas vezes. Ela quer uma confissão, apenas isso; em contrapartida, o acusado afirma com uma firmeza igualmente convincente de que é inocente e que, inclusive, esteve fora do país durante esse período. Entre eles, Escobar tenta manter a sanidade e escutar ambos os lados, entretanto, assim como o espectador, não consegue escolher um lado, simplesmente porque, apesar dos relatos de Pauline serem intensos e dolorosos, não existem provas capazes de culpar Roberto.
Esse é o básico, o que as pessoas precisam saber para se interessarem pelo filme. Não direi mais nada relacionado à trama, seria injusto e não é o meu papel.
Como mencionei, Polanski é um mestre e a obra só é tão efetiva e brilhante, graças à sua condução. Logo de cara, o diretor utiliza um travelling que “invade” a casa de Pauline, indicando ao espectador que é ali que a trama se desenvolverá, e um close up quando a notícia é dada no rádio, dando pistas de que aquele assunto é delicado para ela.
Escobar surge e a câmera é mantida em uma altura confortável, alterada no momento em que Pauline começa uma discussão, expondo a desconexão entre o casal a partir de um ângulo baixo – não os vemos, não têm nada a dizer.
Ao escutar a voz de Roberto, a protagonista se encolhe no canto mais escuro e escondido do quadro, ressaltando seus intensos sentimentos.
Não sabemos o que está acontecendo, apenas acompanhamos os “novos amigos” conversando e Pauline fugindo com o carro, o que, através de cortes precisos, potencializa a tensão, a sensação de que algo está prestes a acontecer. Quando o carro é destruído, Polanski corta para um plano geral da casa – Escobar estava preso, sem saída, o silêncio é absoluto.
Até o encontro realmente acontecer, o terreno é preparado com um cuidado impressionante, digno de um cineasta que domina o ritmo de sua obra e a arte da sugestão e do suspense.
O plano-conjunto, a posição dos personagens no quadro e a variação entre plongées e contra-plongées são responsáveis por reforçarem a condição dos personagens na história – quem domina e quem escuta.
Polanski valoriza o espectador, revelando informações significativas. O movimento sutil da câmera mostra Escobar pegando uma faca.
O plano que define a obra é justamente aquele no qual vemos Roberto amarrado e ensanguentado na cadeira e, ao fundo, com uma baixa profundidade de campo, a protagonista com a arma apontada em sua direção. Na cabeça de Pauline, inverter os papéis significa justiça.
O roteiro é espetacular, tanto na condução da trama, quanto nos ricos questionamentos que suscita. A raiva, o ódio e a vingança são mais importantes que a razão e a calma em um país que passa por um período de pacificação e redemocratização? Ainda que fosse declarado culpado, Roberto não merecia uma defesa? Devolver na mesma moeda não seria uma atitude igualmente baixa e vazia? A dor que Pauline sente, infelizmente, não passará, nem com o assassinato de seu estuprador, nem com sua confissão. É fácil dizer isso, mas a verdade é que ela terá que arranjar uma maneira de conviver com esse trauma. Por outro lado, se o que ela fala realmente aconteceu, como seres humanos, não podemos fingir que somos razoáveis e racionais, queremos a morte mais brutal possível.
Essa contradição é muito bem estabelecida pelo texto e nos coloca em conflito com nossas próprias ideias. Sabemos o que é correto, porém desejamos o oposto – o calor humano vai contra a frieza do julgamento.
Nesse sentido, podemos considerar Escobar o “espectador” dentro do filme. Dividido, ele só quer que a verdade apareça, o que, no entanto, não acontece. Essa demora, somada às ameaças de Roberto, os relatos horrorizados de sua esposa e uma ligação importante do Presidente, o transformam num homem à beira de um colapso nervoso. Escobar é um defensor da democracia, ama Pauline e quer distância de qualquer escândalo que possa atrapalhar sua carreira, ou seja, ele está perdido, desesperado.
Sigourney Weaver oferece uma performance visceral, tomada por medo, ódio, tristeza, vazio e rancor. Ela é dura, domina a tela com olhares penetrantes e uma entonação cortante e é igualmente vulnerável, exalando fragilidade através de sua voz chorosa e expressão de exaustão. A atriz nos convence rapidamente de que algo a incomoda e, antes de explodir e se abrir, já impressiona pela insegurança, melancolia e indignação. Seus diálogos são especialmente difíceis e indigestos e Weaver torna esse vulcão emocional palpável. Polanski reverencia o seu rosto, é algo a ser estudado e analisado.
Ben Kingsley também merece elogios, principalmente por passar alguns minutos completamente imóvel e quieto, deixando o espectador ansioso por uma resposta. O ator controla magistralmente a convicção de Roberto com algumas confusões, que o enriquecem – não sabemos se está mentindo ou se está extremamente abalado. “Como pode ser genuíno? Sou inocente”.
A fotografia é bem direta, até porque a luz na casa acaba, então os tons frios estão sempre presentes e a história não poderia ter outra abordagem. Polanski usa a escuridão para a construção de uma atmosfera soturna e claustrofóbica. A luz da vela que fica no centro da mesa transforma a residência num tribunal, condição que ganha força em uma cena no terceiro ato, na qual vemos Roberto e sua enorme sombra – dualidade? Existem duas pessoas? Quem está ali?
Os figurinos cumprem uma função narrativa interessante. O roupão azul claro denota a fragilidade de Pauline. Roberto veste uma camisa vermelha e, posteriormente, a protagonista, uma saia da mesma cor – Polanski não escolhe um lado, os dois estão em pé de igualdade, não há nada certo.
A trilha sonora é efetiva, não diria que é memorável, mas se encaixa muito bem na estrutura arquitetada pelo diretor.
Por último, não poderia deixar de ressaltar a cena de abertura, cuja rima com o desfecho é brilhante. Polanski usa a música – um tema de Schubert – como símbolo principal do pânico de Pauline e da possível relação doentia que foi obrigada a manter com Roberto.
“Death And The Maiden” é um filme fascinante, um dos mais subestimados da carreira de Roman Polanski.
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