J.J. Gittes é um detetive particular especializado em casos extraconjugais. Ele não tem muito orgulho do que faz, não se sente à vontade “destruindo” lares, quer apenas ganhar a vida dignamente. Seu trabalho, como o próprio diz, requer uma certa sofisticação, fugindo um pouco do que estava acostumado a lidar quando era um policial em Chinatown.
Uma moça chamada Evelyn Mulwray bate à sua porta, a fim de desmascarar o marido, Hollis, chefe do Departamento de água de Los Angeles. Ele tira fotos reveladoras que aparecem nas capas dos jornais.
À tarde, Evelyn reaparece em seu escritório, querendo entender o que estava acontecendo, afinal, ela não havia contratado ninguém para espionar seu marido. Gittes percebe que caiu numa armadilha para afetar a imagem de Hollis, contrário à construção de uma enorme barragem.
Sua intuição não estava errada, poucas horas depois o chefe do Departamento é encontrado morto, afogado. O que as autoridades tratam como um acidente, o protagonista não tem dúvidas de que foi um ato cruel e minuciosamente pensado.
“Chinatown” é um dos melhores e mais influentes filmes da história do cinema. Uma obra prima com personagens riquíssimos, uma trama complexa, repleta de reviravoltas e uma mensagem dura, porém importante.
J.J. Gittes é o clássico anti-herói do gênero Noir. Ternos elegantes, cigarros e um chapéu são acessórios obrigatórios em sua composição. Ele não abandonou as ruas criminosas à toa. Existe um trauma por trás de sua escolha por uma existência pacata e envolve uma mulher. Solitário, o protagonista mascara essa condição com sarcasmo e cinismo, trazendo as pessoas para o seu lado escuro e sombrio. Gittes sabe que a solidão não é para todos e, antes de assinar o contrato, tenta convencer seus clientes de que aquela talvez não seja a melhor saída. Querendo ou não, ele estava de volta à ação, preso em um mistério labiríntico no qual ninguém é totalmente confiável e novas informações surgem repentinamente.
Evelyn Mulwray é uma personagem fascinante. A princípio, enxergamos nela uma certa imponência, no entanto, gradativamente, notamos sua enorme vulnerabilidade. Por que ela pensa em processar Gittes e depois deseja esquecer a história? Qual o seu real interesse em descobrir quem matou Hollis? Existia uma amante? A primeira vez que assisti “Chinatown”, lembro de mudar minha opinião sobre Evelyn com certa facilidade. Após revê-lo algumas vezes, afirmo com tranquilidade que a interpretação de Faye Dunaway é uma das melhores de todos os tempos. Ela é uma suspeita, age estranhamente, parece aflita e tensa, contudo, como mencionei acima, estes são trejeitos que apenas passam a ideia de culpa, sendo, na verdade, movimentos de uma mulher apavorada e atormentada por fantasmas do passado. Em um determinado momento, assim como Gittes, temos certeza de que ela matou o marido e, magistralmente, o roteiro apresenta uma das revelações mais trágicas já vistas em tela.
Tanto o protagonista quanto Evelyn são figuras facilmente identificáveis no universo Noir. Entretanto, as personas não são mais interessantes que as pessoas. Não enxergamos em Gittes a reencarnação de Philip Marlowe, muito menos em Evelyn a de Phyllis Dietrichson. Esses são personagens com individualidades e características muito específicas.
Acreditamos que estamos chegando a algum lugar culpando a dama por se aproximar do detetive. O óbvio seria sensibilizá-lo a ponto de enganá-lo e, obviamente, acreditamos nisso. Felizmente, o roteiro está sempre um passo à frente do espectador e faz de Evelyn uma figura frágil, melancólica e solitária, que pede para Gittes ficar em sua casa não por interesse, mas por temer a escuridão e gostar genuinamente do protagonista – um dos poucos homens que a tratou com generosidade.
Por último, temos Noah Cross, o antagonista da obra. Vivido pelo lendário diretor John Huston, o pai de Evelyn e antigo sócio de Hollis é uma figura repugnante, assombrosa, cuja voz rouca e grossa passa por cima de sua velhice. Não se enganem, Cross é capaz de literalmente qualquer coisa, é a personificação do poder e em um filme que enxerga nele a deterioração do meio urbano e do sistema liderado por seres humanos, não podemos subestimá-lo.
Gittes descobre que a barragem estava prestes a ser construída no “Vale” – seria anexado à Los Angeles -, onde a água havia sido cortada ou poluída, com a intenção de comprar terrenos extensos a preços risíveis. Hollis não gostou do plano…
É esperado que as pessoas tenham assistido a um clássico da década de setenta. Ainda assim, como sou bonzinho, pouparei os leitores de spoilers.
A direção de arte é primorosa. A mansão de Evelyn não é branca à toa. Ela esconde seu passado misterioso e sujo através da cor mais pura e “limpa” possível. As malas de viagem têm um significado óbvio: mudança, a fuga daquilo que atormenta sua mente. O escritório de Hollis é repleto de pistas, indicando, inclusive, onde ele será encontrado morto. Os mesmos porta-retratos apontam também o seu assassino. A agradável e acolhedora sala de Gittes é o contraponto perfeito às ruas sujas de Chinatown – uma opção, sua nova vida. Evelyn aparece, invariavelmente, vestida de preto, com um véu cobrindo seu rosto ou com um chapéu. Antes mesmo de abrir a boca e de apresentar seus trejeitos delicados, sabemos que se trata de uma personagem misteriosa, que se mostra triste e frágil.
A fotografia cumpre bem a sua função “Noir”, abusando do uso de tons frios, azulados, que reafirmam a melancolia noturna inerente à trama. A escuridão e as sombras enriquecem a narrativa, levando Gittes a um universo de dúvidas e violência. Nesse sentido, vale ressaltar a sequência em que o protagonista descobre a verdade envolvendo Evelyn – ele fala com convicção, no entanto, seu rosto está imerso na sombra e só sai, pelo menos, parcialmente, quando é “desarmado”. A fotografia traz à tona, a partir de tons quentes, a questão da aridez em Los Angeles e merece elogios por diferenciar Cross dos demais, tratando o seu “clube” como uma espécie de oásis paradisíaco.
A trilha sonora é maravilhosa, composta essencialmente por instrumentos de sopro e piano – um complemento à altura da obra e de um gênero respeitadíssimo. As batidas são insinuantes, controlam nossas emoções, indo de algo suave ao suspense com muita classe.
Roman Polanski é um gênio. Suas escolhas variam de escala e são igualmente impressionantes. Pouco antes de morrer, vemos Hollis na beira do rio, através de um plongée – ângulo que ressalta a iminência de seu destino. O plano-detalhe das mãos nervosas de Evelyn ao escutar o nome do pai é bastante significativo e fica ainda mais espetacular após repetidas assistidas. O mesmo vale – e aí entra novamente a soberba performance de Dunaway – para a cena na qual ela cobre os peitos. O peixe, servido por Cross com a cabeça, é simbólico, outra sutileza digna de aplausos. Quem não segue na linha, está sujeito a virar refeição…
Polanski tem uma clara preocupação com a posição dos personagens no quadro, principalmente quando são introduzidos. Evelyn, por exemplo, surge atrás de Gittes – uma sombra -, salientando a intimidade que os dois dividirão e também a solidão que sentem. Em contrapartida, Cross e o protagonista ficam de costas, um para o outro, após o detetive ser mais incisivo, ressaltando os lados opostos da lei em que estão.
Polanski movimenta sua câmera com extrema elegância; explora as paisagens desérticas e misteriosas a partir de planos abertos; trabalha com símbolos que reforçam o perigo que Gittes corre, como, por exemplo, o fogo e a fumaça. Não poderia deixar de falar sobre a última sequência, que basicamente sintetiza a obra. Se em algum momento imaginamos que aquelas criaturas solitárias ficarão juntas, ou que pelo menos encontrem algum tipo de alívio e que Cross seja preso, o roteiro deixa claro a sua proposta pessimista e realista. “Forget It Jake, It’s Chinatown” não é uma simples frase, é um profundo estado de desesperança e descrença nas autoridades americanas. Desesperança por um futuro melhor, pela felicidade, pela justiça. Aceitem, tudo está do avesso e nada pode ser feito. O plano geral da rua suja e escura, enquanto Gittes e seus colegas caminham “para trás”, é marcante, um dos desfechos mais brilhantes que a sétima arte já nos proporcionou.
Jack Nicholson é um ator fenomenal e encontra no protagonista a oportunidade de usar as suas características clássicas – sarcasmo, “explosão” e charme -, mas também para explorar um lado mais sensível e atormentado. Essa não é a sua melhor interpretação – acredito que seja em “Five Easy Pieces” -, todavia, está pau a pau com “The Shining” na disputa pelo segundo lugar.
“Chinatown” é o cinema em seu estado puro. Uma obra perfeita, inteligente e deliciosamente perversa.
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