“Boogie Nights” é um daqueles filmes que começa de forma perfeita. Paul Thomas Anderson utiliza um plano sequência e a partir dele entendemos o ambiente que adentraremos e conhecemos os personagens que nele habitam. Todos estão ali, a fluidez da câmera anuncia que a jornada será divertida e o diretor cumpre essa promessa.
Eddie Adams é um jovem sem grandes ambições que acaba esbarrando em Jack Horner, um figurão no meio da pornografia.
É interessante notar a reação do protagonista ao dar de cara com o veterano. Eddie estava acostumado a ser explorado, era pago para realizar necessidades sujas e não fazia ideia onde estava ou poderia se encaixar. Jack percebe o seu carisma e decide colocá-lo a bordo.
Eddie não estuda, seus pais não o entendem e há uma óbvia desconexão entre os três, que caminham em direções opostas. Seu quarto é repleto de pôsteres e referências à cultura daquela época. Eddie quer ser alguém, quer ser uma estrela e talvez tenha encontrado algo importante.
Ele foge de casa, encontra Jack, se une aos astros pornôs, vira uma unanimidade e passa a se chamar Dirk Diggler.
Paul Thomas tem três elementos muito bem definidos em sua cabeça: a jornada do herói, os coadjuvantes e o meio em que estes estão inseridos.
Assim que Eddie chega na casa de Jack, somos transportados a um ambiente muito específico. Os espaços são abertos, as roupas pertencem àquele período e as drogas estão por todos os lados. Em meio a muito luxo, nenhuma pessoa está sóbria, a piscina reflete o calor que os corpos sentem, a casa nunca está vazia e todos conversam, mas ninguém diz algo relevante.
É um ambiente sedutor, ainda mais para um jovem de dezessete anos, que veio do nada e de repente se deparou com regalias e oportunidades. Paul Thomas passeia com sua câmera por aquele lugar com muita tranquilidade, como se estivesse nos seduzindo.
A indústria pornográfica é algo que interessa inconscientemente a qualquer pessoa, principalmente aos homens. O que o diretor faz aqui é extremamente corajoso, raro e convincente. Paul Thomas capta o clima do backstage desse tipo de filme, não só pelo sexo, mas principalmente pela preparação dele, que foge de qualquer espontaneidade. É tudo calculado, até existem sentimentos, no entanto, eles são apenas artifícios dramáticos. Adorei a forma que o diretor guarda “a grande surpresa” para o final, mostrando apenas as reações daqueles que já a conhecem. Parece que temos acesso a um estúdio pornô, tudo soa extremamente verossímil, desde os comandos e a equipe, até o roteiro e a produção, que obviamente não é boa, mas para o nível daquilo é considerada uma obra de arte. Sentimos a sujeira, tudo é palpável aqui, esse filme cheira a sexo.
Como de costume, a coleção de coadjuvantes é fantástica.
Jack Horner é o grande nome, o diretor dos espetáculos. Burt Reynolds convence no papel, duvidamos seriamente que aquele sujeito poderia seguir outra carreira. Jack quer realizar uma obra prima, mas esquece que está no meio errado para isso. Ele se valoriza de uma forma perigosa, ninguém pode tomar seu lugar, ninguém pode roubar os holofotes.
Amber Waves é de longe a personagem mais complexa e interessante. Ela é uma figura contraditória, que se autointitula como “mãe”, é gentil e carinhosa com seus colegas, dá conselhos, mas transa com um jovem de dezessete anos a todo instante e cheira cocaína no piloto automático. Que tipo de “mãe” é essa? Quem é Amber? Por que ela está ali?
Ao longo da trama, descobrimos que aquele meio é a sua zona de conforto, o único lugar onde a personagem é aceita, amada e não precisa se preocupar com nada. Amber não funciona no cotidiano, ela precisa da atuação, porque quando o show acaba, o que vem à tona é deprimente. A vemos uma única vez sem ser naquele ambiente e tudo é diferente: a tonalidade da sala, sua roupa, seu semblante e a própria câmera, que fica estática. Ela não era uma boa mãe, seus vícios transformaram sua realidade. Julianne Moore consegue ser a personificação daquele meio e é extremamente honesta quando demonstra sua dor.
Scotty J é outra figura muito própria daquele lugar. Ele sempre tem algo a dizer, uma declaração que está na ponta da língua. Seymour Hoffman cria uma série de trejeitos que ajudam bastante na caracterização do personagem. Scotty ama Dirk, espera o momento certo para expor isso e acaba sendo destrambelhado demais. Essa cena é conduzida magistralmente. Ele chama o protagonista para ver seu novo carro e no meio do caminho, outras pessoas interrompem Dirk, que está no foco da câmera, entretanto, o que Paul Thomas quer que nós vejamos é o pobre coitado no fundo, que espera ansiosamente pelo grande amor. Até mesmo seu beijo afobado é um ato genuíno. Seymour Hoffman não tem tanto espaço, porém faz questão de roubá-lo quando pode.
Buck Swope é um cara comum, que sonha em abrir sua própria loja de aparelhos de som, mas não tem dinheiro. Há uma cena em que ele conversa com uma colega de trabalho, e ambos estão claramente tensos; as frases saem de forma receosa e os risos são nervosos. No meio de tanto sexo banal, Paul Thomas tem a sensibilidade de nos mostrar o que é o interesse verdadeiro.
Buck protagoniza mais dois momentos importantes para a trama:
Buscando um empréstimo, ele apresenta todos os documentos necessários e mesmo assim, o banco os nega, pois Buck era um ator pornô.
O outro momento é impactante pela manipulação de Paul Thomas, que nos leva a ter reações distintas em um espaço muito curto de tempo. Um bandido entra em uma loja de doces e ameaça o caixa, outro cara surge com uma arma e os três acabam mortos. Buck fica incrédulo. Ele treme e quase chora, mas avista um saco cheio de dinheiro e vislumbra uma oportunidade.
Reed Rotchild é facilmente o personagem com menos personalidade no filme. Ele aborda Dirk com um ar de superioridade, porém quando percebe com quem está se metendo, dá um passo para trás e vira seu fiel escudeiro.
Reed adiciona um humor delicioso à trama. John C. Reilly tem carisma de sobra.
Rollergirl é mais uma jovem sem rumo, que viu na pornografia uma possível família. A cena em que ela sai correndo da sala de aula é pontual, aquele não é o seu lugar. Seu nome é desconhecido, a personagem o esconde, pois nunca soube o que fazer com ele. Rollergirl se limita a alguns comandos e um pouco de charme, ela ainda está se entendendo e buscando seu espaço na sociedade.
Little Bill é outro que se encaixa apenas nesse ambiente. Sua mulher o trai literalmente todo o dia, sem o menor escrúpulo. Ele entra no quarto e já sabe o que esperar. Bill é a chacota do meio, até o momento em que decide pôr um fim naquilo e mais uma vez, Paul Thomas utiliza um plano longuíssimo para cultivar a tensão e atingir o seu clímax com muita elegância.
Chegamos ao nosso herói, cuja jornada é uma verdadeira gangorra de emoções.
A começar pela mudança de nome. Dirk é o que ele sempre sonhou: o reconhecimento, a fama, os holofotes, os prêmios – tudo era seu.
Mark Wahlberg vai muito bem do jovem inocente, deslumbrado com o novo universo, para a grande estrela da indústria pornográfica. Seu pênis é maior que o dos demais, sua resistência é impressionante e suas ideias rendem a Jack prêmios que ele nunca poderia imaginar. Carros, mulheres, drogas, inveja e mansões passam a fazer parte de seu cotidiano e é bom lembrar que há pouco, Dirk era apenas Eddie. Novatos surgem, ameaçam seu posto e Jack é cruel nesse sentido. O protagonista se perde, se vê maior do que realmente é e se enfia em um buraco bem fundo.
Paul Thomas não tem pressa, a derrocada de Dirk varia entre tons e provoca reações distintas. A montagem é brilhante ao acompanhar sua trajetória de forma tão frenética, há muita fluidez.
As demos gravadas provocam risos, mas a prostituição é deprimente. Uma cena dura, que nas entrelinhas reafirma que Dirk Diggler não era mais ninguém. Ele aceita qualquer coisa por dez dólares, se humilha e apanha. Enquanto isso, Jack se vê em um buraco similar, a relação era mútua.
A cena em que Dirk vai com Reed até a casa do traficante é uma das melhores do filme. Paul Thomas brinca com as nossas emoções. Sua câmera passa pela arma do capanga, aquela casa é imponente, mas a música pop e os diálogos absurdos nos fazem rir desesperadamente. A participação de Alfred Molina é sensacional.
Depois de tantos altos e baixos, uma imersão em um ambiente tão sujo e degenerado, Paul Thomas termina o filme da maneira mais doce, otimista e sutil possível. Todos estão tentando, alguns acham seu espaço e outros continuam na indústria, que claramente não é a mesma coisa. Se compararmos a primeira festa com a última, perceberemos que o ambiente mudou completamente. Não há drogas, a casa não está lotada e os elementos que potencializavam aquela farra sumiram. Tudo é mais aconchegante.
Não poderia deixar de elogiar a grande trilha sonora, que além de fundamental para a ambientação, é deliciosa de se escutar.
Esse é o tipo do filme que não poderia se passar em outra cidade. Los Angeles permite esses tipos de personagens, há algo de especial ali.
“Boogie Nights” é um épico. Uma jornada repleta de personagens complexos, uma ambientação intimista e um protagonista que desafia as convenções dos heróis.
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