“Blue Collar” é o tipo de filme que faz o espectador rir com piadas casuais, refletir sobre o espaço do trabalhador comum e se sentar na ponta da cadeira com cenas extremamente tensas. Os protagonistas estão por aí, são pessoas comuns, que, quando vão assaltar um cofre, fazem analogias com a “Pantera Cor de Rosa”. “600 dólares? Somos ladrões de merda”, diz um deles ao perceber que seu plano mirabolante não era tão esperto assim.
“Blue Collar” não é uma comédia, mas é engraçado. Não é um suspense, mas é tenso. Esse é o tamanho do roteiro de Paul Schrader, que tem uma sensibilidade invejável ao desenvolver situações cotidianas, movidas por diálogos orgânicos e engraçadíssimos. Pensamos que seu filme será algo e, poucos minutos depois, estamos diante de outra coisa completamente diferente. Seus personagens vivem na corda bamba, gradualmente mais tênue.
Zeke, Jerry e Smokey trabalham em uma montadora de carros. A música, os movimentos e a fumaça trazem uma forte sensação de urgência. A relação entre os patrões e os empregados é estabelecida pela opressão e por algumas trocas de farpas. Os sindicatos existem para proteger e cuidar dos trabalhadores que, mesmo desconfiando da boa vontade e índole de seus líderes, se reúnem e acreditam que aquela ainda é a única forma de solidificar uma união. Schrader apresenta o cotidiano dos protagonistas, que não se baseia apenas no trabalho árduo, mas também nas idas aos bares e nas relações com suas respectivas famílias. São homens fortes, querem garantir o bem-estar de seus filhos e mulheres, porém não podem, não com o que recebem. Zeke mente para a receita federal e precisa pagar uma multa que cobre praticamente o seu salário anual, já Jerry, tem que lidar com problemas menores, como o aparelho de sua filha. “Onde vou conseguir tanto dinheiro?” “É sobre a minha vida que você está falando.”
São situações que se repetem e que só são remediadas quando Smokey, o mais sereno do grupo, promove uma festa particular, repleta de drogas, mulheres e bebidas. Dentro dessas existências vazias e difíceis, surge uma ideia: assaltar o cofre do sindicato. Um plano que por si só é contraditório, afinal, o dinheiro era dos trabalhadores e o trio estaria traindo seus colegas. Mas, pensando bem, se trata de uma atitude desesperada, de homens que precisam lidar com suas complicações e não recebem a devida atenção. Como o próprio Jerry diz, isso não é um assalto, é um acerto de contas. No entanto, em vez de dinheiro, os protagonistas encontram um caderno que revela todos os empréstimos realizados pelo sindicato. É uma arma, que, bem usada, pode lhes render um valor ainda maior e mudanças significativas na relação entre empregado e patrão. E é exatamente aí que o filme revela sua real intenção. Schrader monta um cenário duro, porém agradável, que leva o espectador a ter certas expectativas e rir com belas tiradas cômicas. Aqueles são amigos, a forma como eles apertam as mãos deixa isso evidente. Poder é a palavra correta, a que simboliza o que assistimos. Assim que os líderes sindicais descobrem os responsáveis por trás do assalto, as coisas começam a ficar mais obscuras e duvidosas. Pessoas se contradizem, invadem casas e perseguem carros. Smokey chega a espancar dois mafiosos, mas acaba sendo a primeira vítima, em um suposto acidente de trabalho. Jerry e Zeke têm personalidades completamente distintas. O primeiro é receoso, paranoico e cuidadoso a ponto de tirar sua família da cidade; o segundo é ambicioso, expressivo e revoltado. Os donos do jogo conhecem ambos e sabem onde colocar cada um. Zeke é promovido a um cargo superior, com direito a um ótimo salário e liberdade para fazer o que bem entender, logo, Jerry fica numa zona de perigo, esperando a sua vez de ser eliminado. O roteiro de Schrader sabe a hora certa de virar a moeda, transformar uma relação fraternal em duvidosa e os atores dão um show, tanto na entonação vocal, quanto na corporalidade. Zeke fala sobre ser negro e a falta de oportunidades, que nada poderia ser feito por Smokey e que cada um deveria seguir o seu próprio caminho. Curioso, pois, bem no início, o mesmo personagem, reclamando de sua condição, diz que todas as famílias merecem a mesma atenção e respeito. Agora, em uma posição superior, Zeke não demonstra a antiga empatia por Jerry, que entende o recado e fica em uma encruzilhada: delatar o sindicato e se tornar um traidor ou morrer. Os líderes querem colocar negros e brancos; jovens e velhos contra si, porque sabem que o seu declínio surgirá apenas através da união. A tela vermelha ressalta quem são os grandes vencedores dessa história. Termos como empatia e egoísmo; vitória e derrota; amizade e indiferença caminham juntos neste retrato ríspido e pungente do capitalismo.
A direção de Schrader não é intrusiva, inclusive, em uma das grandes sequências do filme, ele utiliza um plongée para se distanciar dos personagens, dando espaço para uma conversa íntima – também podendo ter a conotação de julgamento. A cena no boliche é sensacional pelos diferentes níveis de interação entre os personagens, que vão de risadas descontraídas e strikes para discussões tensas sobre o resultado do assalto. Há famílias ali, mas também há dois homens em uma situação complicada. Schrader faz isso com pouquíssimos cortes, tornando o momento, assim como o filme de modo geral, fluido e genuíno. A montagem na cena em que Smokey morre é excelente ao potencializar a claustrofobia e a sensação de que nada mudaria o seu destino. O mesmo pode ser dito na brilhante sequência de perseguição de carros, que se torna ainda melhor graças ao design de som, que opta pelo silêncio absoluto. A direção de arte traz à tona toda a precariedade e sujeira do universo habitado pelo trio central, a partir, principalmente, da falta de cores, conversando diretamente com a Detroit da década de setenta. O figurino de Zeke na última sequência é fundamental para o entendimento do arco do personagem e da mensagem que Schrader quer passar.
Richard Pryor surge como uma figura agitada e inquieta que se posiciona a todo instante. O ator consegue distinguir bem essa faceta para a mais amigável e a de pai de família. Apesar de tudo, seu personagem carrega uma dor enorme dentro de si, exposta em diversos momentos. Diria também que ele é o principal responsável pelo humor no filme.
O sempre irretocável Harvey Keitel oferece uma performance mais introspectiva, mas igualmente intensa, que se destaca pela contradição entre a vontade de ter uma vida melhor e o medo de se envolver em algo perigoso.
“Blue Collar” é uma grande estreia, de um diretor que merece mais respeito.
O que você achou deste conteúdo?
Média da classificação / 5. Número de votos:
Nenhum voto até agora. Seja o primeiro a avaliar!