“Being John Malkovich” é, sem sombra de dúvidas, um dos filmes mais originais que já assisti. Charlie Kaufman realmente é um sujeito que pensa fora da caixinha e que além de nos entreter com uma trama absurdamente hilária, nos coloca para refletir sobre nossos medos, desejos e inseguranças.
Craig Schwartz é um titereiro – manipulador de marionetes – desempregado, que arranja um emprego como arquivista no andar 7 ½ de um prédio comercial. Todos ao seu redor são figuras estranhíssimas e não dizem absolutamente nada com nada. Dr. Lester, seu chefe, tem cento e cinco anos e credita a sua longevidade aos sucos de cenoura que toma.
A única pessoa que realmente chama a atenção de Craig é Maxine, uma mulher sedutora, vulgar e direta, que não demonstra nenhum tipo de interesse pelo protagonista, ainda que ele insista e faça um tremendo esforço para levá-la para tomar um drinque.
Craig é casado com Lotte, que preenche a casa de animais e gaiolas, tornando o ambiente caótico e inabitável. A impressão que temos é que ela prefere seu chimpanzé do que o marido. Todos esses motivos fazem de Craig um sujeito melancólico, abatido e esquisito, que nunca nega seus sentimentos nem a paixão por sua arte, mas que sempre recebe respostas negativas. Seu estado emocional está em sua camisa cinza – mesma cor das paredes de sua casa -, na sua aparência desleixada, nas frequentes decepções, na entonação que denota insegurança e nos quadros que expõem sua solidão.
Seu desânimo e sua impotência refletem na figura de Lotte, cujos cabelos parecem não ter sido penteados há anos e a vida se limita a cuidar de animais.
As coisas mudam quando Craig encontra uma pequena porta em seu escritório que o leva direto para a cabeça de John Malkovich (isso mesmo, o ator). Ele não toma conta da consciência, apenas vê o que Malkovich enxerga por quinze minutos. É uma sensação extraordinária, deixar de ser você, abandonar uma existência vazia e vislumbrar uma outra realidade.
Craig não se contém e acaba contando sua descoberta para Maxine, que transforma aquilo num negócio prolífico: “seja outra pessoa”.
Lotte também passa pela experiência e sente coisas que julgava serem impossíveis de se alcançar, chegando a dizer que deseja ser transexual, o que, pelo tom do filme, não sabemos se rimos ou se levamos a sério.
Maxine, que não sentia atração alguma por Craig, se interessa por Lotte, principalmente quando ela está dentro de Malkovich.
Ou seja, o que temos são seres humanos distintos, mas igualmente insatisfeitos com suas vidas e, de certa forma, deprimidos.
Maxine, que dava indícios de ser uma ninfomaníaca no início, quer ser desejada por duas pessoas ao mesmo tempo. No fundo da retina de Malkovich, ela encontra Lotte, que, por sua vez, se descobre não só sexualmente, mas profundamente. Seu olhar cabisbaixo e pragmático ganha brilho e alegria, algo que Craig nunca pôde dar a ela.
Por sua vez, o protagonista, aceitando sua condição de rejeitado artística e socialmente, percebe em Malkovich a chance de realizar seus desejos sexuais com Maxine e de estabelecer uma carreira notória como titereiro, afinal, só faltava um nome impactante, talento ele tinha.
Em determinado momento, Craig finalmente se “torna o ator”, controlando a sua consciência.
Ainda que admita o seu amor por Lotte, Maxine caminha ao lado do protagonista por puro interesse.
Por último, temos o “culto” presidido pelo Dr. Lester, que tinha cento e cinco anos justamente porque trocava de hospedeiro regularmente. Sozinha, Lotte se junta ao grupo com o intuito de expulsar Craig, se vingar de Maxine e viver eternamente dentro de Malkovich.
As pessoas se frustram, temem a morte, a solidão e querem viver algo significativo; têm dificuldades de se encontrar, de achar um amor verdadeiro e de admitir sentimentos profundos. Com o seu roteiro, Kaufman expõem todas essas condições. Às vezes as coisas são tão difíceis, duras e nem gostamos verdadeiramente do que somos, que tudo o que queremos é ser outro ser humano, um que preencha esses vazios. A verdade é que, de alguma forma, precisamos enfrentar esses percalços, transitar entre fases e torcer para ter sorte. Alguns conseguem, outros não, a vida é assim.
Falando dessa forma, “Being John Malkovich” nem parece ser um dos filmes mais engraçados que já assisti. A sequência na qual o próprio ator entra em sua mente é a mais genial, algo que realmente só poderia sair da cabeça de Charlie Kaufman. A participação de Charlie Sheen é sensacional, assim como a ponta de Sean Penn, que diz algo do qual estou rindo até agora.
Os diálogos são excelentes, esperamos algo inovador e o roteirista sempre nos surpreende. Um dos clientes pergunta se ele pode entrar na mente de qualquer pessoa; Craig não esbanja reação e Maxine diz a verdade. Ao invés de furioso, o sujeito fica aliviado: “era a minha segunda opção.”
A montagem é primordial para o humor, impressionando pelo timing cômico, por exemplo, quando o protagonista diz para Maxine que é um titereiro e ela simplesmente pede a conta ou quando Craig toma um soco na cara bem no início do filme.
A direção de arte estabelece a relação entre o casal principal e também é responsável por caracterizá-los individualmente. A casa é tomada por cores frias e, como disse acima, é extremamente desorganizada. Em determinada cena vemos Maxine entre Craig e Lotte, utilizando uma camisa vermelha – desejo carnal, paixão – e, antes mesmo dos dois avançarem nela, já sabemos o significado daquilo, graças ao cuidado do figurinista e da mise en scéne de Spike Jonze.
O andar com o teto baixo e o túnel que dá acesso à mente de Malkovich merecem destaque por serem elementos marcantes do filme.
A fotografia varia entre tons azulados e acinzentados, optando também por um verde opaco, que remete a algo frágil e debilitado.
A estreia de Spike Jonze não poderia ser melhor. Sua direção é hábil e dinâmica, repleta de movimentos de câmera – inclusive na mão – para gerar tensão ou emular o atordoamento dos personagens. O filme nunca perde o foco, conseguindo flutuar perfeitamente entre a comédia absurda e um drama existencialista, o que, claro, também é mérito de Kaufman. Jonze é igualmente imprevisível e talentoso e a sequência inicial, na qual acreditamos que estamos vendo um show em um teatro, quando na verdade, estávamos no estúdio de Craig, é uma aula de mudança de perspectiva.
John Cusack está excelente como um homem ingênuo, magoado e sensível, que acumula decepções e que, gradativamente, demonstra um lado animalesco.
Catherine Keener recebeu uma justa indicação ao Oscar. A atriz faz de Maxine uma mulher sexy, imprevisível e gananciosa, que ganha complexidade ao longo da trama muito graças à sua caracterização.
John Malkovich está espetacular. Além de interpretar uma versão de sua persona fictícia com perfeição, ressaltando sua dúvida em relação a tudo que está acontecendo, o ator carrega boa parte do papel de Cusack nas costas. Suas reações, como de costume, são impagáveis.
Surpreendente do primeiro segundo aos créditos, “Being John Malkovich” é uma obra prima.
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