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“Aprile” é uma das principais provas de que Nanni Moretti é o cineasta contemporâneo que mais quebra a parede entre cinema e realidade, desenvolvendo obras semi-autobiográficas que contemplam suas maiores inquietudes e paixões.

Após o resultado eleitoral anunciar a ascensão de Silvio Berlusconi e o fracasso absoluto do partido de esquerda, Moretti (todos interpretam a si mesmos) decide realizar um documentário sobre a política italiana. Pouco mais de um ano se passa e o protagonista, prestes a se tornar pai, prepara um musical situado na década de 50, deixando para trás o projeto anterior. “Ainda não filmei um único plano”, diz o homem que, à espera do filho, não consegue se concentrar. Conhecido pela verborragia, Moretti imprime uma intensidade corporal que conversa com suas neuroses. Em questão de minutos, ele muda completamente de ideia, mostrando-se dividido entre as incertezas da paternidades, o temor pela desorganização do partido de esquerda e suas ambições artísticas. 

A narrativa, apesar de assumir uma trama, adota um caráter situacional, o que a torna muito mais intimista. Mais do que uma resolução, queremos acompanhar os processos; os dias que precedem o parto de Silvia, esposa de Moretti, os diálogos casuais, os picos de preocupação e aquilo que ronda os preparativos de uma nova filmagem. Em determinado momento, vemos Moretti falando com sua mãe, pelo telefone, sobre “Heat”, de Michael Mann – é esse tipo de interação que interessa. Federico é um nome muito sério para um bebê, então o casal opta por Pietro. O primeiro filme visto por seu filho, ainda em estado fetal, deve ser especial. Após um estudo minucioso do que está sendo exibido, o protagonista opta pelo cyberpunk “Strange Days”, de Kathryn Bigelow. “A culpa é minha. Levei o meu filho para ver aquela merda memorável. Esses filmes influenciam as crianças”. 

As novas eleições se aproximam e Moretti decide retomar o plano original do documentário, mesmo sem ter a menor ideia de como abordará o tema, nem do que quer dizer. O embate entre o homem e o cineasta; o “dever cívico” e o desejo. Em “Aprile”, Moretti, que sempre foi um diretor muito politizado, está diante de algo mais raro e especial; algo que o embaralha e deixa sua mente turva. Em seus devaneios, ele fala sobre os equívocos da União Soviética e da China de Mao, deixando claro que o caminho a ser seguido pela esquerda italiana é o da “Emília Romana”. À espera do parto, Moretti, a partir de cortes em sequência, fecha o quadro em seu rosto. Posteriormente, o plano cada vez mais aberto, em que o vemos saltitando e se movimentando levemente, serve de contraponto perfeito à tensão e para pontuar o início de uma nova fase.

Os pais aprendem a lidar com bebês e suas particularidades, o que também é apresentado por Moretti da forma mais intimista possível. Sua direção está interessada na observação e nas nuances da trajetória humana, não à toa, a câmera, por vezes, permanece estática. Às vezes, precisamos apenas de uma música tranquila e da imagem de um homem carregando seu bebê na praia para entendermos seu estado de espírito – Moretti sabe quando deve fechar a matraca. Com a vitória do partido de esquerda, fica evidente que o documentário era, na verdade, uma espécie de distração; um trabalho que ocupasse sua mente enquanto enlouquecia com a iminente paternidade. Não seria justo seguir adiante com o musical sem estar totalmente envolvido nele. Projetos de paixão demandam atenção e cuidado. Agora, amadurecido e em paz, Moretti, o cineasta, privilegia a arte em sua vertente mais bela e encantadora. Claro, o teor político é salientado no fim, com os créditos em vermelho.

Realizado por um homem que não tem medo de se expor, “Aprile” é uma joia sobre as concessões que fazemos em prol de um bem maior e as situações que tornam a vida especial.

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