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Em 1978, Woody Allen fez a limpa no Oscar, desbancando o badalado “Star Wars” com um filme que rompeu com todas as convenções das comédias românticas.

A quebra constante da quarta parede, se tratando de uma obra que explora o fim de um relacionamento, poderia ser um tiro no pé. Somos os confidentes de Alvy Singer, estamos lá para entender seu ponto e, na maioria dos casos, concordar com suas indagações. No meio de uma discussão, por exemplo, o protagonista se direciona à câmera e pergunta ao espectador se ele estava certo. Em outro momento, Alvy e Annie, na fila do cinema, se deparam com um sujeito que vomita opiniões vazias acerca de temas complexos. Em meio a uma discussão sexual com sua parceira e as observações do tal sujeito, Alvy divide sua indignação conosco e chama o teórico Marshall McLuhan que, “por acaso”, estava atrás de um cartaz, para colocar o pseudo intelectual em seu devido lugar.

Dessa forma – e de outras -, Allen expõe verdades impossíveis de se alcançar na realidade. A quebra da quarta parede não torna o filme unidimensional; a personagem que dá nome ao título é perfeitamente trabalhada e o fato de conhecermos o protagonista mais a fundo serve também para realçar seus defeitos.

A cronologia “bagunçada” é um mérito da montagem, que compreende a natureza imprevisível dos relacionamentos amorosos. Os primeiros diálogos são recheados de medo, nervosismo e incerteza. Nada de real é dito e essa é versão mais honesta de qualquer ser humano num contato inicial. Em mais uma de suas sacadas geniais, Allen insere uma legenda com o que eles realmente estão pensando. Alvy é um comediante e quando é obrigado a escutar seu possível colega, mantém um sorriso congelado. Temos acesso a seus pensamentos através do voice over, que tem uma função similar às legendas, igualmente revelador e cômico.

“Vamos nos beijar. Acabamos com isso e jantamos. A comida digere melhor”, diz o protagonista, a fim de romper barreiras desnecessárias.

Alvy é inseguro, tenso e contraditório. Ele é culto e cerebral, todavia, detesta quem tenta elaborar algo “profundo”; ele quer Annie, porém fica receoso com a vontade dela de se mudar para sua casa; ele é capaz de terminar o namoro e no dia seguinte a propor em casamento; ele a convence a fazer aulas culturais, mas morre de ciúmes ao vê-la abraçando o professor, e logo se arrepende.

Alvy não permite idéias nem laços novos, temendo pelo fim de sua estabilidade ilusória. Por isso Alvy ama Manhattan, se confunde com a ilha, fechado em seu mundo prestes a ruir. O protagonista não se considera atraente, não entende as mulheres, muito menos a lógica dos relacionamentos, no entanto, como reflete no início e no fim, corremos atrás de algo que não existe. Este não é um filme de rótulos, é um estudo sobre a finitude daquilo que parecia intocável e perfeito.

No começo, Annie sentia excitação no corpo inteiro; depois, começou a inventar desculpas para não decepcioná-lo. Ela é um tanto imatura e suas convicções mudam bruscamente. Se Annie acreditou na carreira musical, é porque Alvy esteve naquele bar barulhento para elevar sua moral. Seu maior interesse por artes e política se deve ao empenho e conhecimento do protagonista.

Ele faz análise há quinze anos e decide pagar algumas sessões para a namorada, que, quanto mais se conecta consigo, mais se distancia de Alvy.

Annie quer Los Angeles, os carros, as mansões, o sol e as palmeiras; quer sair da ilha acinzentada…

O protagonista não suporta a cidade dos sonhos, sente náuseas só de assistir à gravação do programa humorístico de seu amigo – lixo televisivo, segundo o próprio. “Meus pés não tocaram o chão desde que cheguei em Los Angeles”. Em determinado momento, Tony Lacey, seu “grande rival, interpretado por Paul Simon, afirma que saiu de Nova Iorque por causa da sujeira. “Gosto de lixo. É isso” – somente Woody Allen pensaria numa resposta assim.

Em Los Angeles, Annie se adapta, parece mais livre e esperançosa; Alvy, em contrapartida, não muda de roupa, não se deixa curtir um instante sequer, pensando no pior. Ele é um pessimista convicto, não à toa, só dá a Annie livros com morte no título. Sua obsessão por esse tema é enfatizada pela presença do pôster do filme “Face To Face”, de Ingmar Bergman, ídolo de Allen e perturbado pelo medo de morrer. De acordo com Alvy, a vida é dividida em duas categorias: horrível e miserável. Annie precisava disso, o protagonista foi um parceiro importante, o que é reforçado por suas fotos na parede do apartamento dela, junto de seus familiares, mas o tempo passou.

A montagem, mencionada anteriormente, forma um retrato retalhado, ressaltando as abruptas mudanças no teor dos diálogos e no comportamento. Distância e proximidade se misturam e o fim se confunde com o início. “Era ótimo poder conhecê-la”. Eles não guardam rancor, mas as memórias calorosas: as lagostas vivas, o beijo em frente à ponte do Brooklyn, a cocaína espirrada, a aranha monstruosa e os passeios no Central Park. Cada um foi a sua versão mais fiel de si, ninguém fez nada de errado.

A relação de Allen com o Brooklyn é uma constante em sua filmografia. Os personagens visitam o passado e se analisam. O nível de detalhamento nos relatos de Alvy em relação à sua família denota carinho e constrangimento – não num sentido pejorativo.

Quando conhece os pais de Annie, o protagonista fica próximo justamente da avó da namorada, conhecida por odiar judeus. Aqui, Allen introduz outro artifício: a Split Screen. De um lado, a família Hall se senta elegantemente à mesa; do outro, na casa da família Singer, a mesa é menor e o tom amarelado combina com o falatório.

Esse recurso é utilizado também para mostrar, simultaneamente, as consultas do casal com seus respectivos psicólogos. Alvy fica deitado, imerso às sombras; já Annie, se encontra numa sala clara – fases e idiomas distintos.

A narrativa é tão inventiva, que parte até para a animação a fim de refletir o impasse entre o protagonista e as mulheres. Alvy foi uma criança precoce e a cena na sala de aula é absolutamente genial, uma pérola da comicidade autoral.

“Sempre reduz minha vontade animal a categorias psicanalíticas”.

“Não zombe de masturbação. É sexo com alguém que eu amo”.

“Sexo com você é uma experiência kafkaniana”.

Woody Allen estabeleceu sua persona pessimista, sarcástica e neurótica em “Annie Hall”, o único filme que lhe rendeu uma indicação ao prêmio de melhor ator.

Diane Keaton percorre um intenso arco sem perder o charme e o humor. Ela foi, merecidamente, agraciada pela Academia.

“Annie Hall” é uma obra prima singular, sofisticada e distintivamente humana. 

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