A maioria dos diretores tem marcas registradas e Leos Carax não é diferente. Assim como Wong Kar-wai, o cineasta francês tem uma visão bem específica sobre o amor.
Henry McHenry é um comediante e sabe que tem o público aos seus pés. Sua futura esposa, Ann, é uma cantora de ópera. Ambos são artistas, no entanto, enquanto o protagonista “assassina” o seu público, ela “se mata” e os salva.
Henry é chamado de “o primata dos Deuses” e Ann é uma figura quase angelical.
Eles são diferentes e Carax ressalta que o amor é uma força inegociável, capaz de unir todo tipo de gente. Existe o êxtase, um período quase onírico, onde tudo é perfeito. Eis que surge uma filha, Annette, e os coloca em um patamar de felicidade ainda maior. Carax enxerga no amor a capacidade de te fazer levitar e de te derrubar com uma força equivalente.
Henry depende de seu sarcasmo e ceticismo para arrancar risadas do público e para progredir artisticamente. As pessoas não pagam ingresso para ouvir sobre sua vida maravilhosa e essa relação, gradativamente, se satura. Em contrapartida, Ann apenas cresce no mundo da ópera, morrendo todas as noites e recebendo ovações. Os seres humanos se precipitam, se casam sem conhecer inteiramente os seus parceiros (seria isso possível?) e se decepcionam. Henry vira motivo de chacota, tem o seu show cancelado e passa a nutrir uma tremenda inveja da esposa.
Como o protagonista disse no início, ele tem uma forte tendência a olhar para o abismo e o filme caminha nessa direção. De um comediante de vanguarda a um psicopata e um pai explorador. Esse é basicamente o arco de Henry, que se torna cada vez mais ganancioso e egoísta. Após a morte de Ann, Annette é amaldiçoada pela mãe, que doa a própria voz. Solitário e fracassado, o protagonista vê nesse milagre a sua chance de ressurgir financeiramente e, ao invés de ser uma figura paterna presente e carinhosa, opta por um tratamento exclusivamente profissional e artificial com a filha, que não o ama.
“Annette” é um musical operístico e bizarro, então, ainda que “violento”, o filme nunca se torna pesada. Carax brinca com um gênero naturalmente “irreal”, usando suas diversas possibilidades a seu favor.
É uma experiência puramente cinematográfica, que foge de qualquer atitude ou situação cotidiana, o que pode ser ótimo para alguns e péssimo para outros. Carax está mais interessado em criar símbolos através do uso de determinadas cores, explorar o seu conceito de amor e desenvolver o arco do protagonista a partir de músicas. O filme tem canções cativantes, mas também é repleto de diálogos cantados, o que normalmente costuma ser cansativo; todavia, Carax consegue imprimir um ritmo e uma lógica muito interessantes.
A direção de arte e a fotografia são pontos essenciais para o êxito da obra.
Amarelo, azul claro e branco são as cores que definem Ann; ou seja, ela é doce, delicada, pura, frágil e alegre. Em contrapartida, Henry é marcado pelo verde – animosidade, ganância e imaturidade. Se em boa parte do filme a cor está ligada à sua personalidade, no desfecho, salienta a consequência de seus atos. O vermelho também é uma cor bastante presente e varia de acordo com o personagem que está em tela. Ann traz a conotação de “estrela”/foco de atenção e também de amor, já Henry, confere uma conotação mais violenta e brutal à cor.
Assim que mata a esposa, vemos o protagonista coberto por uma roupa preta e óculos escuros, expondo sua vergonha e o seu medo de ser identificado. A escuridão e os tons azulados contrastam com a luz radiante e a presença da natureza no início – amor pleno – e se tornam mais presentes no momento em que Annette nasce, indicando que, a partir dali, as coisas irão desandar. A escolha casa perfeitamente com a frieza do protagonista, que só aumenta ao longo da trama.
“Estar apaixonado me deixa doente”, diz Henry, que realmente muda de personalidade quando se encontra no auge de sua “felicidade”. Carax encara o amor como uma grande gangorra, capaz de levar uma pessoa ao céu e ao abismo. Henry vislumbra o ápice, mas sente na pele apenas o inferno. O amor gera instabilidade, é uma força da natureza, podemos encontrar nossa melhor e pior versão.
O diretor também é incisivo ao criticar o culto às celebridades, tratando os fãs como fantoches, seres abobalhados.
Além de cenas que não tem nenhum compromisso com o realismo, vale ressaltar que o bebê é um boneco – bastante expressivo por sinal -, o que acaba se provando uma ideia genial do diretor, já que Henry a tratava como um objeto, um meio de alcançar a fama que não teve. Apenas no fim, quando ele está arrependido e magoado, que a vemos em carne e osso. Somente ali, o protagonista é o pai que sempre deveria ter sido.
A forte luz que surge quando Annette canta pela primeira vez não parte do encantamento de Henry, mas de sua fome por fama e poder.
A mancha roxa no rosto do protagonista pode ser interpretada de algumas formas: o acúmulo de seus pecados, o tamanho de sua penitência ou uma tremenda crise de consciência, movida por arrependimentos e pela saudade de Ann.
A montagem parece desorganizada em determinados momentos, mas é efetiva ao apresentar a ascensão de Ann e a derrocada de Henry, assim como o sucesso estrondoso de Annette.
Carax foge de exibicionismos, dando total espaço para os seus atores. Dito isso, não poderia deixar de citar o espetacular plano sequência que dá início ao filme – uma cena realmente única e que assume a condição “farsante” da obra. De modo geral, Carax utiliza planos longos e, em momento específicos, close ups, como, por exemplo, no desfecho. Sua inventividade impressiona, principalmente na cena da morte de Ann, na qual ela e Henry estão em um navio no meio de uma tempestade. O caos e a beleza se misturam, criando uma atmosfera mística.
A trilha sonora dos Sparks Brothers é sensacional, variando entre canções que grudam no ouvido do espectador com outras que compõem perfeitamente a narrativa. Até mesmo a sequência do parto se torna interessante, graças ao nível de composição dos músicos.
O maior destaque do filme é Adam Driver. Sua performance é completa, repleta de nuances. O ator sabe quando deve ser voraz e trabalha bem a solidão e o arrependimento de Henry. Ele é grandioso e minimalista; intimidador e sensível. Driver é o ator mais talentoso de sua geração e “Annette” é a grande prova de sua versatilidade. Se em “Marriage Story” já havia dado uma breve demonstração de seu talento para cantar, aqui ele realmente impressiona.
Ao ser perguntado sobre a função do comediante, Henry responde – em uma das melhores frases do filme – : “para desarmar as pessoas”. Em uma boate, entregue à bebida e às mulheres que se interessam apenas por seu dinheiro, o protagonista olha para o espelho e pergunta: “será que algum dia serei amável novamente”? Provavelmente não.
“Annette” é uma experiência grandiosa, um belo estudo de personagem. Um filme que questiona a relação entre público e artista e várias outras coisas.
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