Rocky Sullivan e Jerry Connolly vivem no mesmo bairro e são grandes amigos. Sem dinheiro, eles circulam por aí e cometem pequenos delitos. Em uma dessas “brincadeiras”, Rocky é capturado pela polícia e se recusa a entregar o parceiro. “O que perco com isso? Meu pai terá menos problemas”. Novamente, Michael Curtiz se mostra talentoso ao optar por uma economia narrativa. Através de planos-detalhe, fusões e imagens sobrepostas, somos informados de que o protagonista, aos poucos, deixou de ser um delinquente juvenil, se transformando num bandido altamente requisitado.
Quinze anos se passam. A vizinhança, com suas varandas cheias de roupas e ruas movimentadas, segue intacta. Jerry se tornou Padre, a figura responsável por educar e auxiliar os jovens a trilharem um caminho limpo e digno. Rocky está de volta e o reencontro é marcado por uma cumplicidade comum aos grandes amigos. O terno e o chapéu são característicos de seres que habitam o submundo; por outro lado, a bata simboliza a empatia em meio ao caos. O sagrado e o profano se abraçam, sendo o primeiro, o único capaz de prever o desfecho dessa história.
O contraste se estende à forma como ambos se expressam. Rocky é agitado, sarcástico e fala depressa; Jerry, mantém a serenidade, com um tom de voz adequado ao seu ofício. O protagonista tem pendências a resolver com seu advogado, James Frazier, um dos principais nomes do crime organizado na região. Colocado contra a parede, Frazier pede aos seus colegas que dêem um jeito no protagonista. Rocky antecipa cenários, está sempre um passo à frente dos demais e sabe quando alguém está o perseguindo. Ele deixa o advogado numa posição ainda mais vulnerável, interferindo de vez em seus negócios.
Rocky não é um sujeito detestável, pelo contrário, é agradável, engraçado e carinhoso com aqueles que o acolhem. Um bom exemplo de sua sensibilidade velada é a relação que constrói com Laury. Acostumado com grades e hostilidade desde cedo, o protagonista assumiu a condição de produto de um ambiente tóxico e ardiloso. Rocky não admite fragilidades, aprendeu a ser o exemplo máximo de força e malandragem. Suas ambições e sua posição não são sustentáveis a longo prazo. Jerry, por um breve período, acredita na reabilitação do amigo, no entanto, reconhece um velho truque e é obrigado a fazer escolhas.
Os garotos que frequentam a igreja admiram atalhos e idolatram Rocky, que vira uma espécie de tutor. Longe do Padre, os jovens estavam perdidos, fadados ao futuro do qual ele, felizmente, conseguiu se livrar. Em determinado momento, após extorquir Frazier, o protagonista compartilha parte da fortuna com o antigo parceiro, que sonha em construir um centro particular. Do que vale o centro, se do lado de fora as crianças são seduzidas pelo crime e pela imoralidade? Aceitar o dinheiro significaria voltar ao jogo, crescer à base daquilo que aprendeu a rejeitar. Sim, eles representam lados opostos da lei e da sociedade, entretanto, nunca abandonam a honestidade e o respeito mútuo. Rocky não dá voltas, nem tenta enganar Jerry, que é direto ao informá-lo que pretende, a partir de uma minuciosa investigação, realizar uma reforma social.
Cada vez mais envolvido com pessoas que querem derrubá-lo, o protagonista se vê preso a uma teia grudenta, de difícil desprendimento. “Angels With Dirty Faces” é trágico, pois, no fundo, Jerry não tem dúvidas de que a única maneira de salvar a alma dos garotos é eliminando Rocky. Não me refiro a um assassinato frio e calculado, mas à convicção de que seu amigo, condicionado a uma criação violenta, jamais abandonaria o crime e continuaria sendo o espelho daqueles que prezam pelo caminho fácil. Jerry sabe que, ao dar início à investigação, chegará a Rocky e que a justiça não o poupará de uma punição severa. Em contrapartida, o protagonista, ciente de sua natureza destrutiva, chega a esboçar um sorriso com a escolha do amigo.
A fumaça, na longa sequência de tiroteio, assume a conotação do inferno, local que Rocky estava prestes a conhecer. Condenado à pena de morte, o protagonista revela uma triste verdade: “Jerry, para ter medo, terá que ter coração. Acredito que não o tenho. Faz muito que o perdi”. O Padre quer que ele chore e clame por piedade, quer que os garotos valorizem seu discurso. A longa e escura caminhada é tortuosa, repleta de sentimentos reprimidos. A fotografia em preto e branco, que já era espetacular, atinge um outro patamar. A sombra refletida na parede desconstrói a imagem de Rocky, pela primeira vez, encolhido e apavorado. Dito isso, seu último olhar para a câmera nos leva a crer que o “transtorno emocional” foi premeditado – essa ambiguidade eleva a cena. O rosto iluminado de Jerry ressalta a satisfação ao ver seu amigo se reconciliando com sua humanidade. No fim, o contra-plongée reafirma sua liderança renovada e o início de uma nova fase.
James Cagney foi o baixote mais imponente, carismático e amedrontador da história do cinema. Invariavelmente, Curtiz o coloca cercado por diversos personagens e, ainda assim, graças a sua poderosa retórica, ele nunca fica intimidado. Cagney é brilhante ao trabalhar a dualidade de Rocky, o encarnando como uma figura, simultaneamente, amável e sinistra.
“Angels With Dirty Faces” é uma obra prima do cinema Noir.