“Amadeus” precisa ser visto com um volume consideravelmente alto. O design de som e a trilha sonora são absolutamente deslumbrantes e fundamentais para a ambientação e para o desenvolvimento psicológico dos personagens.
Porém, os sentimentos mais poderosos são silenciosos. No meio de óperas e de um universo vibrante, a falta de palavras diz muito.
Apesar do nome, “Amadeus” não o tem como o foco principal, mas seu “rival”, Antonio Salieri.
No filme, o compositor, já idoso, confessa para um padre como matou Mozart e explica sua relação com a música.
A montagem controla bem as passagens temporais e a fotografia cria um contrataste interessante a partir das cores vibrantes do passado e a escuridão mórbida do presente.
Salieri é facilmente um dos personagens mais fascinantes e complexos da história. Poucos amaram música tanto quanto ele. Ninguém tinha a sua sensibilidade para compreender a beleza de uma composição. O protagonista acreditou na figura divina e se doou ao máximo para se tornar o maior músico de todos os tempos. Eis que surge Mozart, um jovem vulgar, infantil e rebelde, com um talento acima de qualquer outro.
Salieri, que sempre foi humilde e renegou os prazeres carnais, atendendo aos requerimentos divinos, se vê afrontado por aquele rapaz.
Forman utliza planos-detalhe de símbolos religiosos para enfatizar a crença do protagonista, que aos poucos vai se esvaindo.
Sua cabeça é infectada por pensamentos destrutivos e a cada avanço de Mozart, Deus se torna um torturador. A descrença absoluta vem acompanhada de roupas vermelhas, que denotam principalmente ódio.
Salieri, obviamente ocupa o papel de antagonista na trama, no entanto, sua caracterização é tão rica, que o espectador acaba criando algum tipo de empatia pelo personagem.
Sua infância foi miserável, a morte de seu pai trouxe a oportunidade de se mudar para Viena e finalmente se dedicar à música. Acreditando nos dogmas católicos, o protagonista se privou de experiências mundanas, com o intuito de se tornar o maior músico de todos. Ele se dedicou, ganhou reconhecimento, mas se deparou com possivelmente o sujeito mais talentoso que pisou na terra. Esse jovem o supera em absolutamente tudo e o humilha de certa forma. De repente, seu único propósito deixa de ser uma realidade e suas convicções se tornam dúvidas. É óbvio que o ódio e a inveja são os sentimentos mais humanos nessa situação, no entanto, o que confere uma complexidade maior ao personagem é a sua admiração por Mozart.
Em uma fração de segundos, Salieri demonstra emoções poderosas e distintas. Sua dor ao ver as óperas compostas pelo rival é palpável, assim como o seu encantamento.
Ele é o único dentro do teatro que entende a complexidade da obra e, ao mesmo tempo em que se delicia, se amargura, pois sabe que nunca seria capaz de compor algo parecido.
F. Murray Abraham dá uma interpretação magnífica, repleta de nuances.
Salieri nunca se exalta, porém, através das sutilezas conferidas pelo ator sabemos exatamente o que se passa em sua cabeça.
A cena em que ele ajuda Mozart – adoecido – a compor o réquiem é marcante. O protagonista tem o seu adversário nas mãos e, mesmo assim demonstra um carinho enorme por ele, afinal de contas, havia muita admiração ali.
Murray Abraham apresenta muita rigidez em seus movimentos e sua entonação é falsamente cordial. Salieri parece satisfeito com sua situação, mas sabemos que isso não é verdade. Silenciosamente, ele esconde o que sente e trata Mozart como um amigo.
O protagonista o mantém por perto para observar suas fragilidades e aprender algo.
Murray Abraham o transforma em um personagem amedrontador. Suas expressões faciais são genuínas demais e através delas, sabemos o que ele é capaz de fazer.
O Salieri do presente é um sujeito amargo, solitário e doído, que narra seu ódio de forma vivaz e analisa as composições de Mozart com muita sensibilidade. É um retrato triste, de um homem que matou seu oponente, entretanto, se viu preso a uma maldição ainda pior: o extermínio gradativo de sua obra. No fim, Salieri nem considera Mozart seu maior rival, mas Deus, que arrancou sua voz e o prendeu a uma vida indesejada.
O trabalho de maquiagem é fantástico, não só pela transformação em si, mas principalmente por realçar a decadência do protagonista.
Em contrapartida, Mozart surge como uma figura ingênua e infantil. Seu brilho vai apagando ao longo da trama, muito por causa de Salieri, que discretamente inventa histórias a seu respeito. Mozart sabe que é o melhor de todos, não finge ser humilde e inclusive desdenha de Salieri. Diferente do protagonista, ele se entrega aos prazeres e acaba virando alcoólatra. Sem dinheiro e bêbado, Mozart rapidamente se fragiliza e procura abrigo nas palavras reconfortantes do “grande amigo”.
Seu pai é uma figura importante. Sua presença denota controle e sempre é acompanhada de tons escuros e uma trilha sonora impactante. Salieri percebe isso na ópera de Don Giovanni e monta seu plano arrebatador.
O mais triste na trajetória de Mozart é notar que sua genialidade não foi inteiramente admirada pelas pessoas. Mais um exemplo de um mestre que teve que morrer para ter o devido reconhecimento. O plano em que vemos seu corpo na cova ao lado de outros é simbólico nesse sentido.
Tom Hulce acaba sendo ofuscado por Murray Abraham, mas sua interpretação também é fascinante. A risada é um símbolo de sua ingenuidade. O ator desmistifica a figura de Mozart e o traz para perto do espectador. Fora dos palcos, ele é imaturo e erra como qualquer um, contudo, dentro deles, ninguém conseguiu igualá-lo. O perfeccionismo artístico contrasta com as imperfeições cotidianas.
O réquiem é a gota d’água, responsável pela drenagem completa. A transformação física do ator é impressionante, mas o que mais chama atenção é a energia que vai se esgotando lentamente. Suas palavras saem desconexas e sua expressão corporal denota exaustão. A composição do personagem não para por aí: seu figurino, gradativamente, perde as cores; seu cabelo (peruca), antes, impecavelmente penteado, fica bagunçado e sua casa fica cada vez mais escura.
A fotografia varia entre tons. O início é movido por cores vivas e o final por tons de cinza, que anunciam o destino dos personagens.
O teatro do imperador é dominado por detalhes que enfatizam seu poder, enquanto o do povo é mais humilde, tanto na arquitetura quanto nas cores, contudo, é preenchido por uma multidão mais apaixonada por arte.
Forman utiliza planos fechados para expor o que os personagens estão sentindo, entretanto, o grande destaque de sua direção vai para as sequências de ópera, que são conduzidas com uma elegância ímpar. O diretor permite que o espectador entenda a magnitude do teatro e se delicie com o espetáculo. Através de cortes precisos, a montagem também dá ênfase para o trabalho meticuloso e árduo do maestro.
O já citado design de produção merece todos os elogios. Filmes assim precisam de textura e a reconstituição de época é impecável. As locações, figurinos, maquiagens e adereços são mais que convincentes. Eles ajudam a constituir um ambiente rico, que não fica apenas no aspecto da beleza, sendo fundamental para o desenvolvimento da trama.
“Amadeus” faz jus ao personagem que dá nome ao título. Uma obra prima, conduzida por personagens complexos e um universo deslumbrante.
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