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Cansado dos pequenos e banais casos aos quais é submetido, Roger Cobb, um advogado, quer ajudar os pobres e oprimidos; quer fazer a diferença e, para tal, almeja ser aceito por Burton, seu patrão, na sociedade. Ele até prefere ser músico de jazz, no entanto, sabe que não é capaz de carregar ambas as carreiras nos ombros. Roger namora a filha de seu chefe e tem arrepios ao escutar a palavra “casamento”. Completar 38 anos não é motivo de comemoração; pelo contrário, é a constatação de que falta pouco para chegar aos 50. Edwina Cutwater passou a vida no leito de morte e seus dias na terra estão contados. Pensando no outro plano espiritual, Edwina decide colocar Terry, filha de seu cavalariço, como principal beneficiária de sua herança. Dessa forma, através de uma espécie de feitiço, sua alma ocuparia o corpo de Terry e ela poderia, enfim, viver saudável e livre.

-Vou ressuscitar.

-Por que acha que pode fazer isso?

-Porque sou rica.

Presa à sua cama, Edwina desconhece a realidade, o que, de certa forma, é uma alfinetada nos mais afortunados, aqueles que se consideram Deuses em meio a meros humanos. Se o dinheiro não lhe permitiu um conforto pleno nesta vida, o mesmo não acontecerá numa outra “oportunidade” – um mundo paralelo. Roger, encarregado de cuidar dos detalhes do testamento, fica incrédulo com o que escuta e discute com a cliente. Por acaso, o feitiço respinga no protagonista, que é obrigado a dividir seu corpo com a falecida. Esse é o tipo de ideia engenhosa que só poderia ser conduzida por Carl Reiner e estrelada por Steve Martin – caso contrário, estaríamos, muito provavelmente, diante de uma bomba colossal.

Não me vem à cabeça nenhum ator capaz de interpretar um homem, uma mulher imitando um homem, um homem controlando seus impulsos femininos e uma mulher inibindo sua natureza masculina. Sim, é confuso e difícil de entender, porém fascinante de se assistir. Edwina toma conta do lado direito e Roger, do esquerdo. Nos primeiros momentos, quando ainda não se gostam e se desconhecem, vemos um corpo lutando para caminhar. Em uma das melhores cenas, o protagonista é confrontado pela namorada, que acredita ter escutado a voz de uma possível amante. Ele até tenta explicar o absurdo, mas Edwina faz questão de se defender…

Martin confere agilidade a essas sequências, ao mesmo tempo em que tem cuidado para não soar caricato, compondo trejeitos que fazem jus à sua nova “parceira” e um nervosismo compreensível. O humor físico é uma arte refinada e assimilá-la com alterações vocais significativas é uma tarefa complicadíssima. O espectador compra a ideia e cria uma simpatia por Roger, que, aos poucos, vê tudo ruir. O roteiro acerta ao colocar o reflexo de Edwina, interpretada pela excelente Lily Tomlin, no espelho, pois, assim, ela deixa de ser apenas uma alma, assumindo o papel de mulher vulnerável. No seu velório, os únicos telegramas são de empresas de colchão, cadeiras de roda e oxigênio. Ninguém a homenageia, afinal, ela nunca teve amigos. Edwina só queria ter a oportunidade de desfrutar dos prazeres mundanos e de, quem sabe, conhecer alguém – a persona da mansão mascara sua solidão.

Se existe empatia, há companheirismo. Essa é uma das histórias mais peculiares e divertidas sobre a importância da amizade. “Nada pior do que chegar no fim da vida achando que escolheu mal”. Edwina tem lugar de fala e Roger capta a mensagem. Nem todas as pessoas nasceram para passar os dias em escritórios e, a partir de uma reviravolta, podemos dizer que ela lhe dá a chance de finalmente defender os mais necessitados. O plano-detalhe da mão de Roger acariciando algumas flores é sutil o bastante para sintetizar esta relação “metamórfica”. O roteiro desenvolve arcos coesos, culminando num desfecho belíssimo. As sequências do tribunal e do sexo provocam gargalhadas; a da dança, um sorriso.

“All Of Me” é uma das melhores comédias já produzidas em Hollywood. 

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